Page 207 - Revista da Armada
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CRÓNICA DA RESERVA NAVAL



                 Uma História Quase Trágica
                  Uma História Quase Trágica



               uem conheceu o rio Zaire e nele na-  Mas não foram apenas estes os factos evi-  Enquanto estas cenas se sucediam, o mari-
               vegou desde Santo António, na foz,  dentes. Sem que ficasse devidamente escla-  nheiro telegrafista Manuel Cordeiro da Cos-
         Qaté Nóqui na fronteira com o Con-  recido, dois homens apareceram dentro de  ta, o mais novo membro da guarnição, cum-
         go, mantém certamente a recordação fantás-  água, levados pela forte corrente, um deles,  pria impecavelmente as ordens recebidas,
         tica desse cenário de actividade da Marinha,  mais calmo, prestando ajuda ao outro em  emi tindo mensagens para a Defesa Maríti-
         nas muílas, no canal internacional, entre as  semi estado de pânico.  ma, pedindo o auxílio do Posto de Fuzilei-
         inúmeras ilhas, ou nas áreas à guarda e vi-  A bordo, a experiência do Mestre Carlos  ros mais próximo, o da Quissama, na altura
         gilância dos postos fixos guarnecidos pelos  Martins Lota, um veterano já com 38 anos  coman dado pelo 2TEN Élder Martins Vie-
         fuzileiros.                                                                           gas, alertando as várias
           Era o ano de 1963.                                                                  Lanchas que em dife-
         Novembro, um mês de                                                                   rentes áreas cumpriam
         intenso calor, de noites                                                              missões semelhantes à
         que convidavam a lon-                                                                 da “Fomalhaut”, e en-
         gas conversas no con-                                                                 viando um rádio para
         vés do navio, em total                                                                o Comando Naval,
         ocultação de luzes, fun-                                                              solicitando o apoio da
         deado longe das mar-                                                                  Força Aérea para eva-
         gens para fugir à praga                                                               cuação urgen te do ma-
         dos mosquitos.                                                                        rinheiro sinistrado.
           Na “Fomalhaut”,                                                                       À distância, no tem-
         como aliás na “Rigel”,                                                                po, decorridos mais
         na “Pollux”, na “Espi-                                                                de 40 anos, na presen-
         ga” ou na “Régulus”,                                                                  ça de documentos da
         que nessa data consti-                                                                época e de fotografias,
         tuíam parte da  Esqua-  NRP “Fomalhaut”.                                              está ainda na minha
         drilha de Lanchas do                                                                  memória esse dia fan-
         Zaire, cultivava-se o gosto nocturno pela con-  de Marinha, impôs-se a toda a guarnição, im-  tástico, sem dúvida o mais marcante de toda
         templação do céu estrelado e pelo ”ouvir” do  provisando-se uma actuação eficaz que mais  a comissão em Angola.
         silêncio profundo, convite à nostalgia e às lem-  poderia parecer ter sido ensaiada em prévio   Meia hora decorrida chegavam, quase em
         branças longínquas e íntimas de cada um.  plano de adestramento básico.  simultâneo, dois botes do posto da Quissa-
           Foi assim na noite de 5 de Novembro de   As ordens sucederam-se, adequadas, como  ma com o 2TEN Élder Viegas, que cobriram e
         1963, interrompida pela largada e chegada  se constatou mais tarde. Enquanto isso, o ma-  protegeram da água o marinheiro Alexandre
         dos botes em patrulha, emboscados ou à de-  rinheiro fogueiro Alexandre Martins desceu  Martins e largaram de imediato para Santo
         riva rio abaixo.                   novamente à casa da máquina e no regresso  António do Zaire.
           Um a um, os membros da guarnição e o  ao convés, trazia um depósito de gasolina a   Soubemos, ao chegar à Base, que a evacua-
         pessoal fuzileiro embarcado para as missões  arder, que explodiu no momento em que era  ção se efectivara já, e que o avião da Força Aé-
         de patrulhamento foram-se recolhendo aos  lançado borda fora.         rea largara de Luanda, com destino ao Zaire,
         beliches, ficando apenas o vigia e quem com   Esta acção evitou certamente consequên-  apenas 12 minutos depois de ter sido recebido
         ele partilhava mais algum tempo.   cias irremediáveis para o navio e para a guar-  o apelo do navio. Actuação impecável.
           Uma noite, como tantas outras.   nição, tendo resultado deste acto um agrava-  Das Lanchas, entretanto chegadas ao local
           Na manhã seguinte, enquanto o pessoal  mento das queimaduras do marinheiro.  para o auxílio necessário, foi a “Rigel”, sob o
         se ocupava nos serviços determinados e o   Entretanto, foi largado um dos botes, na   comando do 2TEN João Manuel Nobre de
         comandante ultimava o relatório da véspera  tentativa de apanhar os dois homens que,  Carvalho que passou um cabo de reboque
         no Diário Náutico, antecedendo o levantar  apesar das fortes braçadas não conseguiam  à “Fomalhaut”, porque na dúvida acerca da
         ferro para novo dia de missão, uma tremen-  anular a corrente do rio. Na ânsia do momen-  verdadeira causa da explosão se entendeu
         da explosão abalou o navio, originando as  to, ninguém se apercebeu que o bote largou  conveniente não arrancar com os motores
         mais diversas reacções de quantos se encon-  com o motor, mas sem que o respectivo de-  sem uma prévia inspecção.
         travam a bordo.                    pósito de gasolina estivesse a bordo.  Dúvida esclarecida mais tarde. Uma fuga
           Nada mais natural, num espaço limitado a   Mesmo à força de remadas, foi uma eterni-  no depósito de gasolina originara a liberta-
         20 metros de comprimento, no meio de um  dade o tempo decorrido até que os náufragos  ção de gases e, em atmosfera fechada como
         rio onde a corrente ultrapassava os 6 nós e  fossem alcançados. Salvos e içados para bor-  era a da casa da máquina, quando se proce-
         com a companhia dos crocodilos como fau-  do, a sensação de alívio de todos que presen-  dia à limpeza dos terminais do motor de ar-
         na mais simpática.                 ciavam a cena é difícil de descrever.  ranque com um pincel, uma faísca provocou
           Sem conhecimento das causas da explosão,   Havia então que fazer chegar o depósito  o acidente.
         de imediato apenas a constatação de que o  para que o bote regressasse ao navio pelos   António Jorge de Almeida Pinto, coman-
         tejadilho da lancha tinha sido arrancado das  seus meios e o marinheiro Alexandre Martins,  dante da “Pollux” e José Manuel Garcia e Cos-
         suas fixações e que, vindo da casa da máqui-  fortemente queimado e desesperado, pudes-  ta, da “Espiga”, dois subtenentes da Reserva
         na, no meio de espessa fumarada, o mari-  se seguir para Santo António do Zaire com a  Naval, constatada a situação, regressaram às
         nheiro fogueiro António Alexandre Martins  máxima urgência.           respectivas zonas de patrulha.
         apresentava evidentes sinais de queimaduras   O “côco” de bordo cumpriu essa missão,   Embora tendo bem presente todo o cenário
         no corpo e nos membros.            também aqui à força de remadas vigorosas.  em que se desenrolou este episódio, já não re-
                                                                                      REVISTA DA ARMADA U JUNHO 2005  25
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