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A MARINHA DE D. JOÃO III (7)
O alardo de 1525
O alardo de 1525
urante o reinado de D. Manuel foi messiânica. Esta alteração de princípio tem A lmirante e ter ouvido os seus conselhos,
permanente a argumentação régia conduzido a muitas interpretações erradas opiniões, que não tinham merecido o mes-
Dno sentido de que a presença por- da política de D. João III em relação aos es- mo respeito na última fase do reinado de
tuguesa no Oriente tinha como objectivo paços ultramarinos, porque o realismo das seu pai. Esta ideia é confirmada por peque-
fundamental a “grande cruzada” contra dificuldades concretas deixou de ser mis- nas notas e observações deixadas por outras
o infiel que, com uma providencial testemunhas da época.
aliança com o reino cristão da Etió- Em todo o caso, Vasco da Gama
pia, conseguiria retomar Jerusalém e não teve oportunidade de delinear
toda a Terra Santa, em poder do Islão. uma linha de governo da Índia por-
Sempre achei que era um argumento que a morte o surpreendeu prema-
propagandístico, sobretudo porque turamente, poucos meses depois da
me pareceram fracas e insí pidas as chegada a Cochim. Contudo, o seu
tentativas para chegar ao contacto sucessor D. Henrique de Meneses
directo e oficial com o mítico Preste iniciou o mandato com algumas me-
João. Chamei a atenção de que Vas- didas significativas de uma nova or-
co da Gama, na sua primeira viagem, dem, e uma delas foi a elaboração de
percorreu toda a costa oriental afri- uma minuciosa lista de meios e capa-
cana procurando um piloto que o le- cidades que resultou num documen-
vasse à Índia das especiarias, sem se to conhecido hoje pela designação de
interessar por qualquer contacto com “Alardo de 1525”. O texto (ANTT) foi
o soberano etíope. Aliás, se nos lem- publicado em 1868 por Rodrigo José
brarmos bem, só em 1520, quando do de Lima Felner, com umas parcas
governo de Diogo Lopes de Sequeira, notas preliminares (a que o próprio
é que foi enviada uma embaixada ao chamou de Notícia Prévia), sendo
Preste João (Marinha de D. Manuel consensual que um estudo mais apro-
(52)). Mas, justamente, na sequência fundado nos permitiria uma avaliação
dessa embaixada, chegaram a Lisboa mais rigorosa da efectiva força militar
informações diversas sobre o rei cris- naval portuguesa na Índia, em 1525.
tão africano (por sinal uma rainha Destaco o segundo capítulo, intitula-
chamada Elena). Não seriam muito do “Ysto he o que se achou no alardo
animadoras de qualquer projecto im- que Dom Amryque [D. Henrique de
perial, mas D. Manuel mandou elabo- Meneses] fez em Cochym, quando
rar um documento a que deu grande quys hyr d’armada pela costa em Fe-
divulgação nacional e internacional, vereiro de 525, ...” onde se faz uma re-
que circulou com o título Carta das lação do pessoal existente (deduz-se)
novas que vieram a El-Rei nosso senhor Armada que em 1524 partiu para a Índia, sob o comando de Vasco da em Cochim (2200 homens), a que se
do descobrimento do Preste João. Trata- Gama – Livro das Armadas. segue um rol da artilharia embarcada
va-se de um documento de propaganda, tificado. O novo soberano tem as caracte- e armazenada nas diversas fortalezas por-
onde se pretendia dizer que a queda das rísticas inerentes a uma nova era europeia, tuguesas. Mais à frente, outro título diz-nos
cidades islâmicas do Médio Oriente esta- interpretando as suas funções governati- “Artelherya que se acha ser neceçayra pera
va para breve, anunciando-se a reconquis- vas com o que hoje chamaríamos de maior estes galeões e galés e navyos e caravellas,
ta da Terra Santa e o domínio universal da profissionalismo: era lento a andar, a falar, ...”, onde se pode observar um (determina-
República Cristã. Acontece que D. Manuel a ouvir e a decidir, porque tudo nele era do) conceito de armamento dos diferentes
faleceu no final do ano de 1521 e o seu filho premeditado, pensado, medido, calculado navios, com observações sobre as necessida-
mandou retirar e destruir todos os exempla- e programado. Talvez não seja exagerado des a manter nos armazéns, para um conve-
res da carta em causa, numa clara intenção dizer que foi o primeiro rei de Portugal que niente e atempado aprovisionamento. Como
de acabar com esta argumentação e com a viveu e governou dentro dos verdadeiros medida administrativa e numa perspectiva
sequente política imperial que ela envolvia. padrões da modernidade europeia: estru- de avaliação do potencial militar, o docu-
Tanto quanto é sabido hoje, apenas sobrevi- turou um aparelho de estado complexo, mento é extraordinário e merecia o estudo
veu um exemplar desse documento, exis- nomeou os seus funcionários com rigor e aprofundado que já referi. Revela-nos, so-
tente em Londres e publicado em 1938 por prudência, e despachava criteriosamente bretudo, uma nova forma de governar, com
Armando Cortesão e Henry Thomas. Ou num gabinete, analisando, escrevendo e uma preocupação de planeamento qualita-
seja, se D. Manuel usara e abusara de uma enviando cartas, ordens, pareceres e outros tivamente diferente das anteriores.
argumentação que apelava aos ideais da documentos para toda a parte. Um dos aspectos que o “alardo” realça é
cruzada medieval contra o Islão, para con- Diz-se que tinha um particular respeito a importância táctica dos navios de remo a
gregar esforços nacionais e internacionais pela opinião de Vasco da Gama em tudo o que D. Henrique de Meneses irá dar uma
com vista ao estabelecimento no Oriente, que dizia respeito ao Oriente, e terá sido particular atenção. Será assunto para a
o seu filho D. João III não queria dar con- essa a razão porque o nomeou como Vice- próxima Revista.
tinuidade a esse processo: a partir da sua -Rei da Índia em 1524. Não sabemos ao Z
subida ao trono, o Império seria um valor certo se assim seria. É uma conjectura que J. Semedo de Matos
por si próprio e não uma missão de cruzada se apoia no facto de o rei ter chamado o CFR FZ
16 DEZEMBRO 2005 U REVISTA DA ARMADA