Page 378 - Revista da Armada
P. 378

A MARINHA DE D. JOÃO III (7)



                               O alardo de 1525
                               O alardo de 1525



               urante o reinado de D. Manuel foi  messiânica. Esta alteração de princípio tem  A lmirante e ter ouvido os seus conselhos,
               permanente a argumentação régia  conduzido a muitas interpretações erradas  opiniões, que não tinham merecido o mes-
         Dno sentido de que a presença por-  da política de D. João III em relação aos es-  mo respeito na última fase do reinado de
         tuguesa no Oriente tinha como objectivo  paços ultramarinos, porque o realismo das  seu pai. Esta ideia é confirmada por peque-
         fundamental a “grande cruzada” contra  dificuldades concretas deixou de ser mis-  nas notas e observações deixadas por outras
         o infiel que, com uma providencial                                          testemunhas da época.
         aliança com o reino cristão da Etió-                                         Em todo o caso, Vasco da Gama
         pia, conseguiria retomar Jerusalém e                                       não teve oportunidade de delinear
         toda a Terra Santa, em poder do Islão.                                     uma linha de governo da Índia por-
         Sempre achei que era um argumento                                          que a morte o surpreendeu prema-
         propagandístico, sobretudo porque                                          turamente, poucos meses depois da
         me pareceram fracas e insí pidas as                                        chegada a Cochim. Contudo, o seu
         tentativas para chegar ao contacto                                         sucessor D. Henrique de Meneses
         directo e oficial com o mítico Preste                                       iniciou o mandato com algumas me-
         João. Chamei a atenção de que Vas-                                         didas significativas de uma nova or-
         co da Gama, na sua primeira viagem,                                        dem, e uma delas foi a elaboração de
         percorreu toda a costa oriental afri-                                      uma minuciosa lista de meios e capa-
         cana procurando um piloto que o le-                                        cidades que resultou num documen-
         vasse à Índia das especiarias, sem se                                      to conhecido hoje pela designação de
         interessar por qualquer contacto com                                       “Alardo de 1525”. O texto (ANTT) foi
         o soberano etíope. Aliás, se nos lem-                                      publicado em 1868 por Rodrigo José
         brarmos bem, só em 1520, quando do                                         de Lima Felner, com umas parcas
         governo de Diogo Lopes de Sequeira,                                        notas preliminares (a que o próprio
         é que foi enviada uma embaixada ao                                         chamou de Notícia Prévia), sendo
         Preste João (Marinha de D. Manuel                                          consensual que um estudo mais apro-
         (52)). Mas, justamente, na sequência                                       fundado nos permitiria uma avaliação
         dessa embaixada, chegaram a Lisboa                                         mais rigorosa da efectiva força militar
         informações diversas sobre o rei cris-                                     naval portuguesa na Índia, em 1525.
         tão africano (por sinal uma rainha                                         Destaco o segundo capítulo, intitula-
         chamada Elena). Não seriam muito                                           do “Ysto he o que se achou no alardo
         animadoras de qualquer projecto im-                                        que Dom Amryque [D. Henrique de
         perial, mas D. Manuel mandou elabo-                                        Meneses] fez em Cochym, quando
         rar um documento a que deu grande                                          quys hyr d’armada pela costa em Fe-
         divulgação nacional e internacional,                                       vereiro de 525, ...” onde se faz uma re-
         que circulou com o título Carta das                                        lação do pessoal existente (deduz-se)
         novas que vieram a El-Rei nosso senhor   Armada que em 1524 partiu para a Índia, sob o comando de Vasco da   em Cochim (2200 homens), a que se
         do descobrimento do Preste João. Trata-  Gama – Livro das Armadas.        segue um rol da artilharia embarcada
         va-se de um documento de propaganda,  tificado. O novo soberano tem as caracte-  e armazenada nas diversas fortalezas por-
         onde se pretendia dizer que a queda das  rísticas inerentes a uma nova era europeia,  tuguesas. Mais à frente, outro título diz-nos
         cidades islâmicas do Médio Oriente esta-  interpretando as suas funções governati-  “Artelherya que se acha ser neceçayra pera
         va para breve, anunciando-se a reconquis-  vas com o que hoje chamaríamos de maior  estes galeões e galés e navyos e caravellas,
         ta da Terra Santa e o domínio universal da  profissionalismo: era lento a andar, a falar,  ...”, onde se pode observar um (determina-
         República Cristã. Acontece que D. Manuel  a ouvir e a decidir, porque tudo nele era  do) conceito de armamento dos diferentes
         faleceu no final do ano de 1521 e o seu filho  premeditado, pensado, medido, calculado  navios, com observações sobre as necessida-
         mandou retirar e destruir todos os exempla-  e programado. Talvez não seja exagerado  des a manter nos armazéns, para um conve-
         res da carta em causa, numa clara intenção  dizer que foi o primeiro rei de Portugal que  niente e atempado aprovisionamento. Como
         de acabar com esta argumentação e com a  viveu e governou dentro dos verdadeiros  medida administrativa e numa perspectiva
         sequente política imperial que ela envolvia.  padrões da modernidade europeia: estru-  de avaliação do potencial militar, o docu-
         Tanto quanto é sabido hoje, apenas sobrevi-  turou um aparelho de estado complexo,  mento é extraordinário e merecia o estudo
         veu um exemplar desse documento, exis-  nomeou os seus funcionários com rigor e  aprofundado que já referi. Revela-nos, so-
         tente em Londres e publicado em 1938 por  prudência, e despachava criteriosamente  bretudo, uma nova forma de governar, com
         Armando Cortesão e Henry Thomas. Ou  num gabinete, analisando, escrevendo e  uma preocupação de planeamento qualita-
         seja, se D. Manuel usara e abusara de uma  enviando cartas, ordens, pareceres e outros  tivamente diferente das anteriores.
         argumentação que apelava aos ideais da  documentos para toda a parte.   Um dos aspectos que o “alardo” realça é
         cruzada medieval contra o Islão, para con-  Diz-se que tinha um particular respeito  a importância táctica dos navios de remo a
         gregar esforços nacionais e internacionais  pela opinião de Vasco da Gama em tudo o  que D. Henrique de Meneses irá dar uma
         com vista ao estabelecimento no Oriente,  que dizia respeito ao Oriente, e terá sido  particular atenção. Será assunto para a
         o seu filho D. João III não queria dar con-  essa a razão porque o nomeou como Vice-  próxima Revista.
         tinuidade a esse processo: a partir da sua  -Rei da Índia em 1524. Não sabemos ao                     Z
         subida ao trono, o Império seria um valor  certo se assim seria. É uma conjectura que    J. Semedo de Matos
         por si próprio e não uma missão de cruzada  se apoia no facto de o rei ter chamado o              CFR FZ

         16  DEZEMBRO 2005 U REVISTA DA ARMADA
   373   374   375   376   377   378   379   380   381   382   383