Page 95 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. MANUEL (56)



                  O corso mediterrânico e a
                  O corso mediterrânico e a

                      “Esquadra do Estreito”
                       “Esquadra do Estreito”



         É                                  verdade é que esses mesmos franceses, que  actividade que já era efectuada à medida das
             importante perceber o contexto inter-
             nacional em que decorreram os últi-
                                            não viviam em paz com o futuro imperador,  necessidades, com um ou outro navio no mar,
             mos anos do reinado de D. Manuel,  também não viam os portugueses com bons  com um conjunto de galés de reserva no Algar-
         integrando a grandeza do Portugal de qui-  olhos. Aliás, eles faziam parte do grande nú-  ve, outras dispersas pelos portos africanos (em
         nhentos numa Europa onde crescia o poder  mero de prejudicados pelo comércio maríti-  função da situação e das missões), e com um
         dos Habsburgos, que se uniam à coroa por-  mo atlântico português e espanhol.  ou vários navios de “alto bordo” a patrulhar o
         tuguesa pelo casamento de                                                         mar (nesta época a missão po-
         D. Manuel com uma irmã do                                                         dia ser desempenhada por ca-
         provável herdeiro de vastís-                                                      ravelas ou pequenos galeões).
         simas possessões na Europa                                                        Digamos, portanto, que a par-
         do Norte, na Alemanha, e na                                                       tir da reestruturação naval de
         Itália, a que juntava agora as                                                    1520 esta Armada passou a
         coroas de Aragão e Castela                                                        ter um carácter permanente
         com todos os seus domínios                                                        (dimensão variável), que co-
         no Mediterrâneo e no Novo                                                         meçou com a nomeação ré-
         Mundo. A 18 de Setembro                                                           gia de Vasco Fernandes César
         de 1517 Carlos de Gent de-                                                        para capitão de uma caravela
         sembarcava na costa das                                                           “para andar no provimento
         Astúrias para ser aclamado                                                        dos lugares de África”. É in-
         rei de Castela e Aragão, e já                                                     teressante analisar alguns as-
         com uma noção muito clara                                                         pectos do que foi a vida deste
         de que queria ser o Impera-                                                       homem fidalgo (Virgílio Pis-
         dor do Sacro-Império, es-                                                         sarra elaborou um interessan-
         tando disposto a movimen-                                                         te perfil da sua vida enquanto
         tar os meios financeiros que                                                       capitão de navios na Arma-
         para isso fosse necessário.                                                       da do Estreito), que fora adaíl
         Nestas circunstâncias, em-  Estreito de Gibraltar.                                (1) em Azamor durante dois
         bora a posição de Portugal   Prática da Arte de Navegar – Luís Serrão Pimentel.   anos, e que configura um pa-
         fosse um pouco mais modesta, digamos que   De forma que aquilo que seria a actividade  radigma de português aventureiro, com um
         os dois soberanos tinham uma amizade ci-  normal marítima portuguesa, com as suas es-  notável conhecimento do mar e da manobra
         mentada por dois casamentos que teriam  quadras a chegarem da Índia e com o pequeno  do navio, indomável mesmo na adversidade
         uma importância fulcral para o futuro dos  corso no Norte de África, viu-se subitamente  e senhor de uma valentia que compõe o per-
         dois países: Carlos casaria com D. Isabel de  agravado, pelo recrudescimento dos corsários  fil de um verdadeiro guerreiro do mar, a que
         Portugal, filha do rei português, e D. Manuel  muçulmanos que chegam quase até ao Estreito  não falta sequer a aura romântica. Durante o
         desposara em 1518 D. Leonor, irmã do futuro  de Gibraltar, e  pelos franceses (entre outros de  cruzeiro desse mesmo ano de 1520, contam -se
         imperador. Digamos que a aproximação entre  menor significado) que, vindos de Dieppe (Jean  dois combates importante, um dos quais com
         as famílias ibéricas fazia prever, por um lado,  Ango foi um dos principais armadores) ataca-  seis fustas que não conseguiu destruir ou to-
         uma certa paz entre portugueses e espanhóis,  vam o comércio ultramarino no Atlântico.  mar porque o vento fraco favoreceu os navios
         mas um empenhamento mútuo em conflitos   No ano de 1520 D. Manuel procede a uma  de remo. Em 1521, voltou ao Estreito, mas in-
         externos que se desenhavam, como era o caso  reestruturação da estrutura naval portugue-  tegrando uma armada de sete caravelas sob
         da França e do Imperador Turco (Istambul),  sa organizando três armadas que funciona-  o comando geral de Simão da Cunha, cujo
         cujo poder era crescente no Mediterrâneo. Esta  rão com carácter permanente: a Armada da  objectivo era interceptar todos os navios que
         última ameaça externa viria a concretizar-se  Costa, com funções de fiscalização dos mares  transportassem cereais, intimando-os a que
         pelo crescente poder marítimo muçulmano no  ocidentais junto ao continente; a Armada das  descarregassem em Ceuta, onde grassava uma
         Mediterrâneo Ocidental, com o aparecimento  Ilhas que deveria esperar nos mares dos Aço-  especial carência de pão. Voltarei a falar da sua
         de uma intensa actividade de corso que acos-  res as esquadras vindas do Brasil e da Índia,  vida de combatente no mar, em sucessivas
         sou o comércio português do Mediterrâneo  escoltando-as até Lisboa; e a Armada do Estrei-  campanhas que se prolongaram pelo reinado
         (comércio de mercadorias que eram essenciais  to que deveria controlar a região do Algarve e  de D. João III, numa altura em que o corso cres-
         ao país, como os cereais), de uma forma cada  do Norte de África, dentro e fora do Mediter-  ceu no Mediterrâneo Ocidental, passando para
         vez mais intensa, obrigando a tomar medidas  râneo. Noutras alturas falei destas armadas e  o Atlântico e atingindo dimensões que condi-
         defensivas de que irei falar ainda.  das suas missões, mas importa agora referir o  cionaram de forma muito clara a política naval
           Por outro lado, a própria herança de  que aconteceu com a do Estreito, que actuou  portuguesa nos séculos seguintes.
         Carlos V tinha o Ducado da Borgonha  apoiando as praças portuguesas em África                         Z
         numa posição de latente conflito com o rei  (em acções de guerra, de transporte de abas-  J. Semedo de Matos
         Francisco I de França e a guerra adivinha-  tecimentos e de pessoas), protegendo a costa          CFR FZ
         va-se desde os últimos anos da segunda  algarvia e atacando o movimento marítimo
                                                                               Nota
         década de quinhentos. Os portugueses não  muçulmano hostil ao país, no contexto já ci-  (1) O adaíl era o comandante militar directo da
         teriam nada a ver com esse assunto, mas a  tado. No fundo, tratava-se de consignar uma   guarnição de uma praça
                                                                                      REVISTA DA ARMADA U MARÇO 2005   21
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