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MENTALIDADE MARÍTIMA E PODER NAVAL
            MENTALIDADE MARÍTIMA E PODER NAVAL

                 uitos conceitos que frequentemente  viandante te encontrar e te disser que ao belo  poder marítimo. Mais ainda e tal como dizia
                 usamos não têm um entendimento  ombro levas uma pá de joeirar, então deverás  aquele corcireu, assim se impediria “qualquer
         Muniversalmente aceite.            fixar no chão o remo de bom manejo, oferecen-  outro povo” de utilizar a nossa posição geográ-
             Dois dos conceitos difíceis de definir e que  do belos sacrifícios ao soberano Posídon [...]  fica. Não foi certamente por ter lido Tucídides
         alimentam essa diversidade de opiniões, são  depois regressa a casa [...] e do mar sobrevirá  que, na década de 80 passada, o SACLANT, re-
         ‘civilização’ e ‘cultura’.         para ti a morte brandamente, que te cortará a  ferindo-se aos Açores, disse: “Temos que estar
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           Encontrei para mim uma aproximação mui-  vida já vencida pela opulenta velhice...” .    preparados para proteger estas ilhas cedo e em
         to prática, que me tranquiliza: a civilização   Em Portugal, em qualquer tempo, por muito  força, antes que os soviéticos as possam neutra-
         informa-nos sobre o modo de “estar” de um  que o divino Ulisses caminhasse dificilmente  lizar ou ocupar, para seu próprio uso”.
         povo, a cultura dá-nos a conhecer a maneira  encontraria uma terra onde vivesse quem o   Como teria sido diferente o valor da NATO
         de “ser” desse povo; a civilização é o fazer, a  remo não conhecesse.  e mais complexa a sua estratégia durante a
         cultura é o pensar; a civilização é a in-                                   Guerra Fria, se não tivesse tido este ter-
         fra-estrutura da cultura. Se quisermos                                      ço do Atlântico Norte do seu lado!
         usar uma linguagem pós-moderna da                                            Mais adiante, quando Tucídides
         revolução da informática, civilização é                                     enumera os povos que “participaram
         o ‘hardware’, cultura é o ‘software’ e o                                    na guerra de um lado ou de outro”, re-
         que registamos em memória.                                                 “Marés da Aguda” – Mike Weber / Dirk Bleicker  fere “os metimneus, que contribuíam
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           Será talvez por isso que nos referi-                                      com naus em vez de tributos” .
         mos quase sistematicamente à civili-                                         É também curioso o paralelismo en-
         zação egípcia, maravilhados com as                                          tre estas situações e o que foi estabele-
         suas construções, já que a interpreta-                                      cido no tratado assinado em Março de
         ção da sua escrita é, em tempo histórico                                    1374 entre D. Fernando e Henrique II
         (1819 -1822), muito recente e continua-                                     de Castela, segundo o qual o nosso so-
         mos sem saber até onde tinha chegado                                        berano “forneceria duas galés duran-
         o pensamento cientifico dos constru-                                         te três anos, armadas por Castela, e se
         tores das pirâmides; mas o estudo dos                                       comprometia a não permitir que os in-
         clássicos gregos dá-nos, com certeza,                                       gleses se abastecessem em portos por-
         uma ideia clara da sua cultura.                                             tugueses e mesmo a expulsá-los como
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           Uma civilização resultou sempre de                                        inimigos” . Este foi um período muito
         uma cultura ou acompanhou o desen-                                          perturbado, de muitas alianças de sen-
         volvimento de um grupo de culturas.                                         tidos contrários e de guerras, entre Por-
         Mas o inverso pode não ser verdadei-                                        tugal, Espanha e Inglaterra.
         ro. Há culturas que não deixaram civi-                                       A diferença entre a mentalidade ma-
         lização: é o caso dos grupos papuas ou                                      rítima e a mentalidade continental é a
         amazónicos recentemente conhecidos                                          diferença que vai de Camões e o nos-
         que têm a sua cultura sem civilização                                       so herói Gama, a Cervantes e o seu he-
         “edificada”.                                                                 rói imaginado Dom Quixote. É a dife-
           Proponho tratar o conceito “menta-                                        rença entre nós que comemoramos os
         lidade marítima”, importante elemen-                                        nossos navegadores e os nossos vizi-
         to caracterizante da cultura portuguesa, da   Outro exemplo é a obra de Tucídedes, a por-  nhos que comemoram os feitos dos seus con-
         maneira de “ser” do povo português, mas  menorizada e extensa “História da Guerra do  quistadores.
         também sem tentar defini-lo, dando apenas  Peloponeso” (entre 431 e 404 a.C.). Para além   Os nossos irmãos espanhóis reconhecem
         alguns exemplos.                   da descrição dos combates, são centenas de  essa diferença pois publicaram na “Revista
            Saberemos o que é mentalidade marítima  páginas de notável descrição da organização  General de Marina” o Decalogo Naval que, no
         se lermos o notável poema “Odisseia”, vivido  e do uso do poder marítimo por parte daque-  segundo parágrafo, diz: “España es nación de
         no mar do princípio ao fim, com referências  les povos, onde não faltam o estabelecimen-  condición eminentemente marítima. Sin embar-
         constantes a muito variados povos do mar. E  to de alianças, a construção naval, o recruta-  go, la mentalidad de sus hombres es marcadamente
         quando no fim das suas prodigiosas aventu-  mento, etc.                continental”.
         ras o divino Ulisses procurava o doce regresso   É interessante, por exemplo, uma passagem   A este aparente conflito de atitudes referir-
         a Ítaca, foi ouvir a alma do cego adivinho Ti-  do discurso do representante dos corcireus pe-  me-ei mais tarde.
         résias. Este apresentou-lhe a antevisão do seu  rante a Assembleia de Atenas, quando tentava   Um povo com mentalidade marítima tem
         fim pacífico numa descrição longa, da qual se  captar o apoio desta potência naval na guerra  poetas como o que, referindo-se a três gotas
         pode tirar uma breve passagem, hoje muito re-  contra os coríntios, também presentes naquela  de água que a nuvem do céu desprendeu, se
         ferida sem que talvez se saiba que a sua autoria  assembleia trilateral:  lembra de destinar uma à fauna, outra à flora
         é atribuída a Homero, e que bem estabelece a   “Quando a aliança oferecida representa  e a terceira às ondas do mar imenso, porque
         diferença entre aqueles que têm mentalidade  acréscimo de forças marítimas, e não terrestres,  tem em mente e nos vem recordar que a água
         marítima e os que têm mentalidade continen-  afastar este aliado não é indiferente; em vez  é essencial à vida e que a vida nasceu no mar;
         tal. Aconselhou Tirésias:          disto, deveríeis por todos os meios impedir,  tem poetas como aquele que se demora na
           “...deverás partir com um remo de bom  se possível, que qualquer outro povo possuís-  contemplação do reflexo das nuvens correndo
         manejo, até que chegues junto daqueles que  se naus ou, isto não sendo viável, deveríeis ter  velozes sobre as salinas e vê nestas o “espelho
         o mar não conhecem, homens que na comida  como amigo o mais forte neste ponto” . 2  do céu”; tem poetas como o que, em Mensagem
         não misturam o sal, nem conhecem as naus   Recordamos, certamente, que Portugal ma-  dedicada ao povo e à juventude do seu país,
         de rebordos vermelhos, nem os remos de bom  rítimo entrou para a NATO porque afastar  escreve: “Ó mar salgado, quanto do teu sal /
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         manejo, que às naus dão asas. E dar-te-ei um  este aliado não era indiferente, e porque para  São lágrimas de Portugal! ” Tem crianças que
         sinal claro, que não te escapará: quando outro  a Aliança representávamos um acréscimo de  nas exposições de trabalhos escolares de fim de
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