Page 259 - Revista da Armada
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ano sempre apresentam desenhos com barqui- a cavalo, uma muito grande parte da Eurásia, guês. Define o que Mahan designou por ‘ca-
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nhos, com peixes, uma praia, um céu com gai- desde o Pacífico à Europa Central . Nunca fo- rácter do povo’.
votas ou um pôr do Sol, sempre sobre o mar, ram um povo marítimo. Para um país ser uma potência marítima,
como a geografia lhes ensinou. Num povo marítimo, mesmo aqueles que usando a palavra potência no sentido de ‘po-
Ulisses deveria penetrar o interior até en- não vão ao mar, como os marnotos e os sarga- der soberano’ e não no da graduação desse po-
contrar “homens que na comida não mistu- ceiros, os seareiros e os conserveiros, os cons- der que é sempre uma relação, é necessário que
ram o sal”. No mais profundo Portugal, e no trutores navais, os estivadores ou os comer- se encontrem reunidas três condições:
tempo em que rareavam os transportes e não ciantes, é tudo gente que vive com o mar e - Que o povo tenha mentalidade marítima;
havia rede de frio, iria encontrar o hábito do do mar, tal como o descreve o escritor japonês - Que o país tenha capacidade e vontade
bacalhau proveniente das secas, da sardinha contemporâneo Mishima, acerca do jovem para desenvolver projectos ligados ao uso ou
salgada em barricas ou do polvo seco. E só personagem do seu romance “O Tumulto à exploração do valor do mar;
uma forte tradição marítima pode justificar das Ondas”: - Que os governantes compreendam o sen-
que numa recente mostra de culinária no inte- “A concepção que o pescador tem do mar tir da nação e tomem a iniciativa de fomentar,
rior do país apareçam receitas conventuais de é semelhante à que o lavrador tem do pedaço ou pelo menos de apoiar, as várias actividades
“sardinhas doces” levadas para lá por freiras de terra que cultiva. O mar é o lugar onde ga- ligadas ao mar.
vindas de mosteiros da beira-mar, em tempos nha a vida. Em lugar de campos de espigas de Se concordarmos com a caracterização de
muito recuados. Trabalhando, contemplando, arroz ou de trigo, há um campo sempre sus- uma potência marítima a partir destas três pro-
brincando e comendo, o mar existe, na vida do surrante de vagas brancas, cuja forma varia posições, poderemos facilmente compreender
povo português. sem parar, agitando-se sobre um solo sensível o “segundo mandamento” do Decálogo Naval
Para Vitorino Nemésio parece mesmo fasti- e irrequieto” . 9 espanhol atrás referido.
dioso insistir em falar daqueles É que a Espanha, e também
que querem explicar a ligação a França, apesar de terem to-
de Portugal ao Mar. Escreveu das as condições para serem
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num artigo : potências marítimas, e de se-
“Portugal e o mar são gé- rem as duas únicas nações
meos na Terra e na História. com ligações amplas aos dois
Dizê-lo é experimentar a im- mares europeus, o Atlântico e
pressão linguística de enjoo o Mediterrâneo, tiveram quase
que todo o escritor conhece, invariavelmente Governos de
forçado a um lugar comum. forte mentalidade continental.
É uma verdade palmar, espi- Têm sido estes os “homens de
ritual e telúrica. A partir dela mentalidade marcadamente
se define o nosso velho povo continental” a que de forma
radicalmente atlântico”. um tanto cautelosa o Decálo-
Mas, perdoe-se a insistência, go Naval se referia.
ao recordar ainda Hernâni Ci- Mais recentemente (1998), o
dade que, num ensaio sobre a conceituado estrategista Almi-
importância do mar na forma- rante da Armada Eliseo Álva-
ção de Portugal, retrata magistralmente a vida Esta imagem não nos pode surpreender, a rez-Arenas foi muito mais directo: “La politica
dos povos marítimos em redor do Mediterrâ- nós portugueses que vimos os ‘bois que la- española no se ha preocupado de atender a la condici-
neo. Diz a certa altura: vram o mar’ e os sargaceiros que são seareiros ón eminentemente marítima de España aunque sin
“O Mediterrâneo era uma espécie de praça com inscrição marítima. Ainda há bem pouco tierras en ultramar se quedara, tal vez por incom-
líquida, em torno da qual se situavam povos tempo, os melhores fertilizantes das culturas prensión del político, nasciente esta de su ignorância
a que as condições geohistóricas facilitavam do nosso litoral eram o sargaço, o moliço e o […] El español sigue en su plena «continentalidad»
o progresso. Distâncias curtas convidavam a escaço. pese a la permanente insistência de la condición emi-
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frequentes viagens de comércio e convívio, e Napoleão, homem inteligente de mentali- nentemente marítima de España” .
era todo um animado bulício de actividades e dade fortemente continental, não compreen- A França nunca teve reis que compreendes-
experiências, nessa troca de produtos das mãos deu o valor do poder naval de que dispunha. sem o valor do mar e é um bom exemplo de
e das mentes, que decorria entre países que a Recorreu ao bloqueio continental para vencer uma potência de mentalidade continental que
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geografia assim privilegiava” . a Inglaterra, que já tinha um império rico fora esporadicamente adquiriu capacidade maríti-
Alimentavam essa praça os mercadores das da Europa e era potência marítima. No mar co- ma por decisão política.
caravanas da “rota da seda” ou da “rota das meçou a derrota do “corso” e a Marinha fran- Contudo, alguns governantes tentaram, ex-
especiarias” que nas margens do Mediterrâneo cesa, a partir de então, apenas pôde recorrer à cepcionalmente, desenvolver o poder maríti-
oriental trocavam os camelos por barcos. guerra de “corso”. mo para engrandecimento do seu país. Entre
Também Portugal, depois de em Aljubarrota Foi Napoleão quem disse que “a história de essas raríssimas excepções salientam-se o Car-
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ter garantido a sua independência e ter fecha- um país é a história da sua geografia”. deal Richelieu e Colbert . Numa História da
do a fronteira terrestre com Castela, e haven- E assim é. Marinha relativamente recente da Academia
do já anteriormente concluído a expansão para Henrique Lopes de Mendonça escreveu: “A de Marinha Francesa, pode ler-se: “Depois de
Sul até ao ponto onde a terra se acaba e o mar mais gloriosa das tradições de Portugal está no Colbert jamais a França teve uma esquadra
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começa, trocou os cavalos por navios e orga- mar. Não admira que desde o começo da nossa comparável” .
nizou a grande expedição a Ceuta, preâmbu- história o mar nos namorasse. Portugal é uma Em Outubro de 1626, Richelieu conseguiu
lo do notável empreendimento marítimo que, nesgazinha de território cortado ao poente da que Luís XIII o nomeasse “grão-mestre, chefe
com esforço e persistência, espalhou a cultura Península Hispânica. Metade das suas frontei- e superintendente geral da navegação e do co-
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europeia por todo o mundo. ras são beijadas pela água salgada” . mércio da França”, título que antecedeu mui-
Foi o que os mongóis, exímios cavaleiros das Tem mentalidade marítima o povo que, tos outros como o de tenente-general do Rei.
estepes, tentaram fazer, pelo menos por três identificando-se com o uso do mar, entende o Três meses após aquela nomeação, foi abolido
vezes, mas sempre fracassando. No entanto, valor do mar e dele quer tirar proveito. o cargo de Almirante da França, título de pres-
século e meio antes do início da nossa expe- Mentalidade marítima é uma das caracte- tígio mas que era atribuído com frequência a
dição marítima haviam conquistado, sempre rísticas marcantes da cultura do povo portu- quem nada sabia do mar. Acabou com os res-
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