Page 68 - Revista da Armada
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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (20)
Fuzos!... Prontos!
Fuzos!... Prontos!
á uns tempos partilhei aqui com os Mas a verdadeira aventura começava nos pri- prática as últimas aulas de natação, fazendo a
meus martirizados leitores uma histo- meiros contactos com a pista de combate, sobre sua entrada na pista com um aparatoso mergu-
Hrieta passada na Escola de Fuzileiros, a qual já tínhamos ouvido uma ou duas peripé- lho de cabeça e efectuando cinquenta metros
tendo na altura mencionado que aquele episó- cias sofridas pelos que nos haviam antecedido, do percurso num perfeito estilo “bruços”, sem
dio não constituía a única lição que eu já rece- como a do desgraçado que se “baldara” do sli- esquecer o controlo respiratório (e com umas
bera dos nossos “fuzos”. E não o disse por aca- de gigante (proeza que lhe valera a alcunha de valentes goladas de água lodosa à mistura).
so, uma vez que o meu primeiro contacto com Birdman, em honra do homónimo herói alado O mesmo camarada tratou de criar nova si-
a Marinha se fez por intermédio daquele Corpo da BD) e ficara com o corpo todo quadriculado tuação de boa disposição dias mais tarde, du-
de briosos militares, já lá vão trinta e tal anos, da rede que lhe amparara a queda (felizmente rante uma aula de Infantaria, quando o instru-
durante o período a que eu chamo pomposa- ela estava lá!) ou a de um grupo que os instruto- tor o mandou tomar conta do pelotão e marcar
mente “a minha primeira comissão na Guiné”. res tinham distribuído pelas duas únicas abertu- a cadência da marcha. Como ainda não tinha
De facto, não tendo a honra de usar a boina ras do apertado e claustrofóbico túnel/labirinto a “letra” da cantilena bem decorada, pôs-se a
azul-ferrete, posso afirmar, com toda a proprie- subterrâneo (cuja configuração era permanen- entoar “Esquerdo… Direito… Hip! Hop!... Es-
dade, que me corre sangue fuzileiro nas veias temente alterada), deixando os infelizes com- querdo… Direito… Hip! Hop!...”. Está-se mes-
e que essa herança paterna influenciou decisi- pletamente perdidos e entalados até alguém, mo a ver a risota que isto gerou (nem o cabo
vamente a escolha que hoje me faz orgulhar de finalmente, se decidir a vir em seu socorro. Da que nos acompanhava conseguiu disfarçar os
usar o botão de âncora. minha experiência particular só me ocorre, fe- “soluços”), desacertando de uma vez por todas
É, aliás, por ter plena consciência dessa afi- lizmente, o caso de um camarada que saltou o passo dos marchantes. Bom rapaz, o R. B.! Foi
nidade que a Marinha escolheu a Escola de para o “galho” de pernas abertas, produzindo, pena a sua exclusão da classe de Marinha o ter
Fuzileiros como local de passagem obrigató- ao chocar com o poste, um ruído semelhante levado a optar por outra carreira!
rio para os todos os seus “recrutas”. E é pelo ao da fruta a ser esmagada. Ao escorregar para A véspera do último dia na Escola foi passada
mesmo motivo que, há já pelo menos um par o solo vinha branco como a cal, com os olhos numa prova de orientação nocturna que deve-
de décadas, os candidatos à Escola Naval efec- completamente esbugalhados. Bem lhe berrava ria terminar antes das duas da manhã. O pro-
tuam um pequeno “estágio” naquela unidade. o comandante de companhia “Respire fundo! blema é que algumas equipas ficaram perdidas
E se na altura em que o fiz o encarei como um Respire fundo!”, mas o pobre coitado, enrola- no meio da Mata da Machada e como tinham
reencontro não é menos verdade que para ou- do sobre si próprio, só conseguia murmurar uns sido instruídas para “abrigar” atrás dos arbustos
tros camaradas foi um verdadeiro tratamento sufocados gemidos de dor. quando vissem passar o jipe dos instrutores (que
de choque: a começar na corrida matinal antes A pista de lodo era outra experiência mar- fazia de “inimigo”) ignoraram durante várias ho-
do pequeno-almoço, passando pela obrigação cante, sendo que aí o carácter escorregadio ras os avisos de que a prova tinha sido dada por
de nos deslocarmos em formatura de um local dos obstáculos era compensado pela confortan- terminada. Quando todos, finalmente, se aper-
para outro e acabando nos fatigantes treinos de te sensação de termos piso mole por baixo de ceberam de que não se tratava de uma simula-
Infantaria que muitas vezes se prolongavam para nós. Claro que isso nem sempre constituía uma ção já o dia começava a romper. Recolhendo às
lá da hora do Recolher. Enfim, um ritmo mais vantagem, como sucedia no “salto à fuzileiro”, cobertas, ainda nos enfiámos debaixo dos len-
do que intenso, mal dando tempo para respirar uma queda de cinco metros no vazio, em que çóis para uma breve “passagem pelas brasas”,
quanto mais para gozar uns breves momentos vi um dos meus condiscípulos enterrar-se de tal que a Alvorada não tardaria. Ao apagar a luz,
de ócio! Tudo isto para ensinar a um grupo de maneira ao chegar ao solo que só se lhe viam um dos nossos enquadrantes disse “Até amanhã,
jovens e ainda pouco conscientes “paisanos” o os olhos de fora da lama viscosa. Outro, porém, mancebia.”. “Até amanhã, não, Sr. Cadete…”,
significado da palavra “Disciplina”. no estofo da enchente, não hesitou em pôr em corrigiu um dos candidatos, “Até já!”. “Negati-
vo!”, cortou o enquadrante, “Na Marinha
dizemos sempre «Até amanhã!», nem que
seja só por cinco minutos!”. Guardei esta
lição. Nos anos que se seguiram, na ma-
drasta vida de bordo, mesmo naquelas
alturas em que dispunha apenas de meia
horita para me estender no beliche, nunca
deixei de apagar a luz, aconchegar-me sob
os cobertores e murmurar para mim pró-
prio “Até, amanhã!”. Ao acordar era como
se tivesse dormido a noite toda.
Claro que esta curta experiência não
nos deu sequer uma pálida ideia daqui-
lo por que passa quem aspira a tornar -se
fuzileiro (e quem é este representante da
“Marinha de Pau” para o fazer?!), mas
serviu, sobretudo, para nos inteirarmos
de que aqueles homens constituem uma
importante e inalienável parcela da iden-
tidade da Marinha (não obstante o facto
de haver sempre quem teime em ver dois
mundos distintos). Da parte que me toca
apenas veio cimentar o respeito que por
30 FEVEREIRO 2007 U REVISTA DA ARMADA