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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (20)



                             Fuzos!... Prontos!
                              Fuzos!... Prontos!



               á uns tempos partilhei aqui com os   Mas a verdadeira aventura começava nos pri-  prática as últimas aulas de natação, fazendo a
               meus martirizados leitores uma histo-  meiros contactos com a pista de combate, sobre  sua entrada na pista com um aparatoso mergu-
         Hrieta passada na Escola de Fuzileiros,  a qual já tínhamos ouvido uma ou duas peripé-  lho de cabeça e efectuando cinquenta metros
         tendo na altura mencionado que aquele episó-  cias sofridas pelos que nos haviam antecedido,  do percurso num perfeito estilo “bruços”, sem
         dio não constituía a única lição que eu já rece-  como a do desgraçado que se “baldara” do sli-  esquecer o controlo respiratório (e com umas
         bera dos nossos “fuzos”. E não o disse por aca-  de gigante (proeza que lhe valera a alcunha de  valentes goladas de água lodosa à mistura).
         so, uma vez que o meu primeiro contacto com  Birdman, em honra do homónimo herói alado   O mesmo camarada tratou de criar nova si-
         a Marinha se fez por intermédio daquele Corpo  da BD) e ficara com o corpo todo quadriculado  tuação de boa disposição dias mais tarde, du-
         de briosos militares, já lá vão trinta e tal anos,  da rede que lhe amparara a queda (felizmente  rante uma aula de Infantaria, quando o instru-
         durante o período a que eu chamo pomposa-  ela estava lá!) ou a de um grupo que os instruto-  tor o mandou tomar conta do pelotão e marcar
         mente “a minha primeira comissão na Guiné”.  res tinham distribuído pelas duas únicas abertu-  a cadência da marcha. Como ainda não tinha
         De facto, não tendo a honra de usar a boina  ras do apertado e claustrofóbico túnel/labirinto  a “letra” da cantilena bem decorada, pôs-se a
         azul-ferrete, posso afirmar, com toda a proprie-  subterrâneo (cuja configuração era permanen-  entoar “Esquerdo… Direito… Hip! Hop!... Es-
         dade, que me corre sangue fuzileiro nas veias  temente alterada), deixando os infelizes com-  querdo… Direito… Hip! Hop!...”. Está-se mes-
         e que essa herança paterna influenciou decisi-  pletamente perdidos e entalados até alguém,  mo a ver a risota que isto gerou (nem o cabo
         vamente a escolha que hoje me faz orgulhar de  finalmente, se decidir a vir em seu socorro. Da  que nos acompanhava conseguiu disfarçar os
         usar o botão de âncora.            minha experiência particular só me ocorre, fe-  “soluços”), desacertando de uma vez por todas
           É, aliás, por ter plena consciência dessa afi-  lizmente, o caso de um camarada que saltou  o passo dos marchantes. Bom rapaz, o R. B.! Foi
         nidade que a Marinha escolheu a Escola de  para o “galho” de pernas abertas, produzindo,  pena a sua exclusão da classe de Marinha o ter
         Fuzileiros como local de passagem obrigató-  ao chocar com o poste, um ruído semelhante  levado a optar por outra carreira!
         rio para os todos os seus “recrutas”. E é pelo  ao da fruta a ser esmagada. Ao escorregar para   A véspera do último dia na Escola foi passada
         mesmo motivo que, há já pelo menos um par  o solo vinha branco como a cal, com os olhos  numa prova de orientação nocturna que deve-
         de décadas, os candidatos à Escola Naval efec-  completamente esbugalhados. Bem lhe berrava  ria terminar antes das duas da manhã. O pro-
         tuam um pequeno “estágio” naquela unidade.  o comandante de companhia “Respire fundo!  blema é que algumas equipas ficaram perdidas
         E se na altura em que o fiz o encarei como um  Respire fundo!”, mas o pobre coitado, enrola-  no meio da Mata da Machada e como tinham
         reencontro não é menos verdade que para ou-  do sobre si próprio, só conseguia murmurar uns  sido instruídas para “abrigar” atrás dos arbustos
         tros camaradas foi um verdadeiro tratamento  sufocados gemidos de dor.  quando vissem passar o jipe dos instrutores (que
         de choque: a começar na corrida matinal antes   A pista de lodo era outra experiência mar-  fazia de “inimigo”) ignoraram durante várias ho-
         do pequeno-almoço, passando pela obrigação  cante, sendo que aí o carácter escorregadio  ras os avisos de que a prova tinha sido dada por
         de nos deslocarmos em formatura de um local  dos obstáculos era compensado pela confortan-  terminada. Quando todos, finalmente, se aper-
         para outro e acabando nos fatigantes treinos de  te sensação de termos piso mole por baixo de  ceberam de que não se tratava de uma simula-
         Infantaria que muitas vezes se prolongavam para  nós. Claro que isso nem sempre constituía uma  ção já o dia começava a romper. Recolhendo às
         lá da hora do Recolher. Enfim, um ritmo mais  vantagem, como sucedia no “salto à fuzileiro”,  cobertas, ainda nos enfiámos debaixo dos len-
         do que intenso, mal dando tempo para respirar  uma queda de cinco metros no vazio, em que  çóis para uma breve “passagem pelas brasas”,
         quanto mais para gozar uns breves momentos  vi um dos meus condiscípulos enterrar-se de tal  que a Alvorada não tardaria. Ao apagar a luz,
         de ócio! Tudo isto para ensinar a um grupo de  maneira ao chegar ao solo que só se lhe viam  um dos nossos enquadrantes disse “Até amanhã,
         jovens e ainda pouco conscientes “paisanos” o  os olhos de fora da lama viscosa. Outro, porém,  mancebia.”. “Até amanhã, não, Sr. Cadete…”,
         significado da palavra “Disciplina”.  no estofo da enchente, não hesitou em pôr em  corrigiu um dos candidatos, “Até já!”. “Negati-
                                                                                   vo!”, cortou o enquadrante, “Na Marinha
                                                                                   dizemos sempre «Até amanhã!», nem que
                                                                                   seja só por cinco minutos!”. Guardei esta
                                                                                   lição. Nos anos que se seguiram, na ma-
                                                                                   drasta vida de bordo, mesmo naquelas
                                                                                   alturas em que dispunha apenas de meia
                                                                                   horita para me estender no beliche, nunca
                                                                                   deixei de apagar a luz, aconchegar-me sob
                                                                                   os cobertores e murmurar para mim pró-
                                                                                   prio “Até, amanhã!”. Ao acordar era como
                                                                                   se tivesse dormido a noite toda.
                                                                                     Claro que esta curta experiência não
                                                                                   nos deu sequer uma pálida ideia daqui-
                                                                                   lo por que passa quem aspira a tornar -se
                                                                                   fuzileiro (e quem é este representante da
                                                                                   “Marinha de Pau” para o fazer?!), mas
                                                                                   serviu, sobretudo, para nos inteirarmos
                                                                                   de que aqueles homens constituem uma
                                                                                   importante e inalienável parcela da iden-
                                                                                   tidade da Marinha (não obstante o facto
                                                                                   de haver sempre quem teime em ver dois
                                                                                   mundos distintos). Da parte que me toca
                                                                                   apenas veio cimentar o respeito que por

         30  FEVEREIRO 2007 U REVISTA DA ARMADA
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