Page 104 - Revista da Armada
P. 104
HISTÓRIAS DA BOTICA (61)
O Grumete Justo…
O Grumete Justo…
“…Bem aventurados sois, quando vos in-
juriarem e vos perseguirem e mentirem, dis-
serem todo o mal contra vós…”
Evangelho de São Mateus
ode um homem lutar contra tudo e to-
dos e mesmo assim sobreviver? A lógi-
Pca diz-nos que não, todavia tenho co-
nhecido muitos em que assim não acontece,
que apesar de tudo prevalecem. São habitual-
mente pessoas discretas, com as quais nos
cruzamos muitas vezes sem darmos sequer
pela sua existência. Quem os conhece – e
eu, felizmente, conheço muitos – sabe que
têm uma vida dura e uma história cheia de
obstáculos.
De entre as pessoas assim estão muitos da-
queles que cozinham para nós, que limpam
o que sujamos, que, enfim, trabalham para o
nosso conforto. São, muitas vezes, no mundo
actual os descartáveis…Aqueles que não inte-
ressam, números sem nome. A muitos destes,
sem-nome, tenho procurado dar cara de pes-
soa e vida nestas histórias. Existem ainda ou-
tros, aqueles que apesar de um mundo cada
vez mais imoral insistem em defender ideias Já na Marinha foi valorizado no curso que Sabe-se também – e eu sou o primeiro a
e princípios, apesar de essa atitude lhes tra- fez, particularmente pelos conhecimentos admiti-lo – que a Igreja Católica e muitas
zer muito poucos proveitos e, frequentemente teóricos que trazia e também pela dedica- outras igrejas, ou religiões, cometeram ao
mesmo, verdadeiros dissabores… ção ao trabalho – que, percebíamos imedia- longo dos séculos verdadeiros crimes e ain-
A história que vos trago hoje é de um ho- tamente pela sua postura, sotaque serrano e da hoje estão, nalguns aspectos, longe da
mem assim, que nesta história vou apelidar atitude séria, só podia ser absoluta. Os pro- moralidade que elas próprias apregoam. No
de O Grumete Justo. Este rapaz, com cerca blemas tinham sido na relação com os ca- entanto, todos reconhecemos, as religiões
de 20 anos, procurou os meus serviços pelas maradas. Acontece que um grande número são feitas por homens e, estes, por defini-
habituais queixas cardíacas, que apresentam de jovens praças são actualmente oriundos ção, são imperfeitos.
muitas vezes todos quantos têm sofrimento de meios urbanos, digo mesmo suburbanos, Considero que a mensagem do Novo Testa-
do espírito. Eles são as palpitações, picadas, com atitudes e cultura muito distintas deste mento é – ainda hoje – verdadeiramente revo-
sensações de que o “ar não entra” e muitas nosso Grumete. lucionária, como atesta a citação acima, que
outras a que já me habituei e que – naquelas Se a cultura for um código, que tem como glorifica os pequenos, diferentes e persegui-
idades – geralmente são sintomas benignos, sinais exteriores o vestir, falar, o sentir, compre- dos da vida. Considero, ainda, que qualquer
ditos psicossomáticos (…isto é, são uma for- endi que este jovem não tinha nada a ver com religião atribui ao homem uma riqueza moral,
ma de a mente dizer ao corpo que ele, corpo, os seus camaradas. Não ouvia a mesma músi- dificilmente alcançável de outro modo, pois
não está bem). Assim foi também neste caso. ca, era respeitador de um modo quase esque- lhe dá a noção da sua finitude pessoal e da
Após a bateria habitual de exames verificou- cido neste nosso país, não era particularmente grandeza que são as preocupações, quando
-se que o nosso jovem tinha um coração são, fã de discotecas, ou de “shots” disto ou daquilo altruísticas e anónimas, com outros. Neste
sem qualquer maleita que justificasse tantas e, estranheza imensa, acreditava no Deus com sentido, é esta preocupação, e este sentir su-
queixas. que cresceu toda a sua vida…é profundamen- perior, que nos separa dos animais não racio-
Passamos, depois à fase seguinte, tentar te católico. Sofria, percebíamos então, porque nais e da boçalidade, egoísta e feroz, com que
perceber afinal o que estava em jogo. Afinal se achava desajustado, diferente… nos defrontamos quotidianamente.
qual era a fonte de sofrimento? Para isso é pre- Pude compreender este grumete perfeita- Percebi então que o jovem militar se sen-
ciso fazer algo pouco em voga nas consultas mente. Vivemos actualmente numa situação tia discriminado pelos seus pares. Pelo seu
actual mente – é preciso perder tempo. Depois em que a afirmação de uma religião qual- sentir diferente e provavelmente por algu-
de alguma conversa de circunstância lá me foi quer religião, é quase um crime. Os políti- ma ingenuidade (…que na minha mente
dizendo o rapaz que nascera e vivera quase cos evitam fazê-lo, ao contrário dos políticos é uma forma de bondade), que evidencia-
toda a sua vida numa aldeia, pequena, per- de novos continentes, como a América do va. Era de solidão e de desencanto que este
to de Viseu. Que tinha um tio padre católico, Norte, para os quais religião, é sinónimo de marinheiro sofria, não de qualquer doença
que o aconselhou a seguir os seus passos. Na moralidade e, como tal, um bem desejável e cardíaca – que seguramente não possuía. A
verdade – acabou por confessar - tinha feito vendável politicamente…Muitos de nós, tam- solidão, tomo-o por certo, pode ser fonte de
a escolaridade num seminário, mas, no final, bém, fazem de conta que a sua herança ca- sofrimento, mas também pode ser imensa-
não achou que aquele era o seu caminho… tólica morreu. Contudo, continuam-se a pro- mente criativa. Por outro lado, qualquer um
Seguiu então a opção naval. Era uma forma ceder a imensos baptizados e casamentos na que revele diferença, também o sei por ex-
de sair da aldeia – “era uma forma de ver o igreja, compreende-se, é outra solenidade, é periência, será perseguido, desvalorizado e
mundo” dizia… outra festa… muitas vezes exposto pejorativamente, pela
30 MARÇO 2009 U REVISTA DA ARMADA