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HISTÓRIAS DA BOTICA (61)



                                 O Grumete Justo…
                                 O Grumete Justo…


           “…Bem aventurados sois, quando vos in-
         juriarem e vos perseguirem e mentirem, dis-
         serem todo o mal contra vós…”
                           Evangelho de São Mateus

             ode um homem lutar contra tudo e to-
             dos e mesmo assim sobreviver? A lógi-
         Pca diz-nos que não, todavia tenho co-
         nhecido muitos em que assim não acontece,
         que apesar de tudo prevalecem. São habitual-
         mente pessoas discretas, com as quais nos
         cruzamos muitas vezes sem darmos sequer
         pela sua existência. Quem os conhece – e
         eu, felizmente, conheço muitos – sabe que
         têm uma vida dura e uma história cheia de
         obstáculos.
           De entre as pessoas assim estão muitos da-
         queles que cozinham para nós, que limpam
         o que sujamos, que, enfim, trabalham para o
         nosso conforto. São, muitas vezes, no mundo
         actual os descartáveis…Aqueles que não inte-
         ressam, números sem nome. A muitos destes,
         sem-nome, tenho procurado dar cara de pes-
         soa e vida nestas histórias. Existem ainda ou-
         tros, aqueles que apesar de um mundo cada
         vez mais imoral insistem em defender ideias   Já na Marinha foi valorizado no curso que   Sabe-se também – e eu sou o primeiro a
         e princípios, apesar de essa atitude lhes tra-  fez, particularmente pelos conhecimentos  admiti-lo – que a Igreja Católica e muitas
         zer muito poucos proveitos e, frequentemente  teóricos que trazia e também pela dedica-  outras igrejas, ou religiões, cometeram ao
         mesmo, verdadeiros dissabores…     ção ao trabalho – que, percebíamos imedia-  longo dos séculos verdadeiros crimes e ain-
           A história que vos trago hoje é de um ho-  tamente pela sua postura, sotaque serrano e  da hoje estão, nalguns aspectos, longe da
         mem assim, que nesta história vou apelidar  atitude séria, só podia ser absoluta. Os pro-  moralidade que elas próprias apregoam. No
         de O Grumete Justo. Este rapaz, com cerca  blemas tinham sido na relação com os ca-  entanto, todos reconhecemos, as religiões
         de 20 anos, procurou os meus serviços pelas  maradas. Acontece que um grande número  são feitas por homens e, estes, por defini-
         habituais queixas cardíacas, que apresentam  de jovens praças são actualmente oriundos  ção, são imperfeitos.
         muitas vezes todos quantos têm sofrimento  de meios urbanos, digo mesmo suburbanos,   Considero que a mensagem do Novo Testa-
         do espírito. Eles são as palpitações, picadas,  com atitudes e cultura muito distintas deste  mento é – ainda hoje – verdadeiramente revo-
         sensações de que o “ar não entra” e muitas  nosso Grumete.            lucionária, como atesta a citação acima, que
         outras a que já me habituei e que – naquelas   Se a cultura for um código, que tem como  glorifica os pequenos, diferentes e persegui-
         idades – geralmente são sintomas benignos,  sinais exteriores o vestir, falar, o sentir, compre-  dos da vida. Considero, ainda, que qualquer
         ditos psicossomáticos (…isto é, são uma for-  endi que este jovem não tinha nada a ver com  religião atribui ao homem uma riqueza moral,
         ma de a mente dizer ao corpo que ele, corpo,  os seus camaradas. Não ouvia a mesma músi-  dificilmente alcançável de outro modo, pois
         não está bem). Assim foi também neste caso.  ca, era respeitador de um modo quase esque-  lhe dá a noção da sua finitude pessoal e da
         Após a bateria habitual de exames verificou-  cido neste nosso país, não era particularmente  grandeza que são as preocupações, quando
         -se que o nosso jovem tinha um coração são,  fã de discotecas, ou de “shots” disto ou daquilo  altruísticas e anónimas, com outros. Neste
         sem qualquer maleita que justificasse tantas  e, estranheza imensa, acreditava no Deus com  sentido, é esta preocupação, e este sentir su-
         queixas.                           que cresceu toda a sua vida…é profundamen-  perior, que nos separa dos animais não racio-
           Passamos, depois à fase seguinte, tentar  te católico. Sofria, percebíamos então, porque  nais e da boçalidade, egoísta e feroz, com que
         perceber afinal o que estava em jogo. Afinal  se achava desajustado, diferente…  nos defrontamos quotidianamente.
         qual era a fonte de sofrimento? Para isso é pre-  Pude compreender este grumete perfeita-  Percebi então que o jovem militar se sen-
         ciso fazer algo pouco em voga nas consultas  mente. Vivemos actualmente numa situação  tia discriminado pelos seus pares. Pelo seu
         actual mente – é preciso perder tempo. Depois  em que a afirmação de uma religião qual-  sentir diferente e provavelmente por algu-
         de alguma conversa de circunstância lá me foi  quer religião, é quase um crime. Os políti-  ma ingenuidade (…que na minha mente
         dizendo o rapaz que nascera e vivera quase  cos evitam fazê-lo, ao contrário dos políticos  é uma forma de bondade), que evidencia-
         toda a sua vida numa aldeia, pequena, per-  de novos continentes, como a América do  va. Era de solidão e de desencanto que este
         to de Viseu. Que tinha um tio padre católico,  Norte, para os quais religião, é sinónimo de  marinheiro sofria, não de qualquer doença
         que o aconselhou a seguir os seus passos. Na  moralidade e, como tal, um bem desejável e  cardíaca – que seguramente não possuía. A
         verdade – acabou por confessar -  tinha feito  vendável politicamente…Muitos de nós, tam-  solidão, tomo-o por certo, pode ser fonte de
         a escolaridade num seminário, mas, no final,  bém, fazem de conta que a sua herança ca-  sofrimento, mas também pode ser imensa-
         não achou que aquele era o seu caminho…  tólica morreu. Contudo, continuam-se a pro-  mente criativa. Por outro lado, qualquer um
         Seguiu então a opção naval. Era uma forma  ceder a imensos baptizados e casamentos na  que revele diferença, também o sei por ex-
         de sair da aldeia – “era uma forma de ver o  igreja, compreende-se, é outra solenidade, é  periência, será perseguido, desvalorizado e
         mundo” dizia…                      outra festa…                       muitas vezes exposto pejorativamente, pela

         30  MARÇO 2009 U REVISTA DA ARMADA
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