Page 249 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (65)
O rei das pequenas coisas
O rei das pequenas coisas
ual é a essência
da alma portu-
Qguesa?
Se o leitor meditar na-
quela pergunta, assim,
a seco e de rompante,
várias ideias lhe ocor-
rerão decerto – de for-
ma a responder de for-
ma acertada. A essência
da alma portuguesa,
dirão alguns, está bem
representada no Fado –
não só na canção, mas
na genérica melanco-
lia que nos caracteriza
e pela qual somos in-
ternacionalmente co-
nhecidos. Outros que
não. Não terão sido o
Fado, nem a melanco-
lia. Foi, isso sim, o es-
pírito aguerrido de uns
quantos nobres, ao lon-
go da história, que por
artes da guerra e da po-
lítica, ousaram manter
Portugal livre dos seus
opressores e construí-
ram um Império que
abrangeu todos os con-
tinentes. Talvez ambas
estas ideias estejam cor-
rectas. Contudo, eu, homem inculto e, as junto do condutor do táxi, ou ao balcão de da sua vida e aquele Cabo, metediço e ar-
mais das vezes, irreflectido, ouso aqui ex- qualquer loja se percebesse que o cliente reliador, gorara as suas expectativas. Fora
por o que considero ser a principal carac- era português, ou o mesmo se identificasse da loja tomaram-se de razões, até que o
terística dos homens e mulheres de Portu- como tal, para atingir um patamar diferente velho Cabo sorrindo, sem dar grande troco
gal. Assim ouse também o leitor paciente de atendimento. ao discípulo de Hipócrates, lá o foi arrastan-
seguir com atenção a história que tenho Acontece que esse médico acabou por do por vielas escuras daquela também an-
para contar. gostar, ele também, de sabores exóticos tiga cidade Colombiana. Pararam, por fim,
A história começa há muitos anos quan- como determinados licores de frutas – tal numa tasca de aspecto pouco digno, suja
do determinado jovem médico embarcou como o licor de maracujá. Aconteceu mes- até. Falou então o senhor Cabo num perfeito
pela primeira vez. Perdido num mundo mo que em determinada estadia num país castelhano da Raia de Portugal, dirigindo-
naval, para ele, quase desconhecido. Foi da América do Sul, a Colômbia, decidiu -se a um rapazito que não aparentava mais
conhecendo sítios e pessoas de uma cul- comprar uma garrafa para levar de recor- de quinze anos:
tura nova. Percebeu com espanto que, em dação – era para o dia de anos do seu pai, - Oiga Juanito, donde estan las bote-
qualquer porto do mundo, por mais exóti- que ele sabia ser apreciador de tais espíri- llitas?
co que ele fosse, se ao primeiro dia o navio tos, digamos, quase medicinais. Ora ia pre- O rapaz colombiano apresentou então,
tardava em dar licenças. Ao segundo dia cisamente o doutor materializar o acto de seis lustrosas garrafas, exactamente do mes-
já se encontravam marinheiros em muitos compra de tal garrafa de licor de maracujá mo produto licoroso e marca que o jovem
pontos. Nos cafés, nos supermercados. Já pelo valor que corresponderia em dinheiro médico queria levar como recordação. Es-
havia este ou aquele marujo que travara português de então a cerca de 1000 escu- tas estavam primorosamente embrulhadas
conhecimento com este ou aquele taxis- dos, quando por milagre surgiu vindo do em embalagem de bambu e, surpresa das
ta. Combinara com ele, rapidamente, uma nada o Sr. Cabo Alcino – militar antigo de surpresas, vendiam-se por menos de meta-
viagem preferencial de turismo, por que o idade e de muitos embarques. Este de ime- de do preço que o médico esteve prestes a
marujo português ganha pouco e é sim- diato desvalorizou o produto, em frente do pagar por uma só garrafa…
pático… ou, pura e simplesmente, conse- vendedor. Que não prestava, que era aze- Encontrei este mesmo Cabo, que há mui-
guira descontos previamente negociados a do. Que a garrafa tinha resíduo. Não dei- to tempo não via, por fortuito acaso, numa
preços módicos, de qualquer lugar até ao xou, portanto, o digníssimo clínico comprar cama de um hospital estranho, pois o “man-
cais de atracação. Esses e outros descon- o produto. Este jovem médico ficou a um so” médico era eu. Não me falou logo. Li-
tos eram extensivos a todos os camaradas, tempo confuso e furioso, afinal tinha tudo -lhe nos olhos o medo de que com os anos
acontecendo muitas vezes que bastava que muito bem planeado para fazer o negócio e a fraca memória de muitos, já não me
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