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HISTÓRIAS DA BOTICA (67)



           O cantor, o marinheiro
           O cantor, o marinheiro

               e os simples… no coração
               e os simples… no coração


           magine o leitor um cantor muito conheci-  nheiro, fruto dos seus muitos recursos, fez com  vida na mão, entram em pânico ao menor sinal
           do, do tipo mundialmente famoso. Imagine  que lhe entregassem, ali mesmo em Tróia, uma  de fragilidade, procurando fortaleza em ícones
         Iagora que era (ou terá sido) extremamente  moto de alta cilindrada – “Era para as desloca-  vazios deste tempo moderno.
         rico. Tinha quintas e criados. Tinha até a ex-  ções, afirmava…” Nessa noite, enquanto regres-  Na minha vida e prática pessoal contacto
         centricidade de um zoo privado. Tinha passa-  sava de licença teve um acidente grave. Faleceu  com o sofrimento de muitos. Emociono-me
         do por períodos de grande sucesso, alternado  no Hospital de Setúbal no dia seguinte…  muitas vezes com o sofrimento alheio, talvez
         com outros de relativa opacidade. Da sua vida   No meu dicionário pessoal aquele mari-  mais que a maioria (…é um caminho que não
         emanava, sobretudo, uma incapacidade para  nheiro ficou como sinónimo de insatisfação.  escolhi voluntariamente). No princípio lutava
         se aceitar a si próprio. Senão vejamos: em pri-  Para ele, tal como para o tal cantor falecido re-  contra este forma de ser (por considerar, como
         meiro lugar modificou o corpo até mudar o  centemente, nada chegava. Era como se uma  me dizem muitos, que é sinal de uma fraque-
         seu aspecto étnico. Teve uma série de envol-  parte do seu ser estivesse persistentemente va-  za potencialmente usável contra o próprio).
         vimentos com mulheres estranhas, dos quais  zia. Ao contrário, encontro imensos humildes  Com o tempo aprendi a aceitar essa parte de
         resultaram filhos, que geneticamente não pa-  para os quais a vida traz múltiplas fontes de  mim, como uma qualidade não como um de-
         recem ser seus… Entretanto fora acusado, oca-
         sionalmente, de relações com crianças a ron-
         dar a pedofilia…
           Apesar do seu óbvio sucesso, aparentava
         uma grande infelicidade. Afirmava, em entre-
         vistas públicas, que tinha tido uma infância
         infeliz, em que não se sentiu respeitado pela
         família, particularmente pelo pai, que o mal-
         trataria regularmente, até ao ponto crítico que
         incluía a violência física regular…Era um ser
         frágil. Preenchia o vazio através de objectos
         (que publicamente comprava a preços exorbi-
         tantes, numa quantidade que só era suplantada
         pelo óbvio mau gosto). Neste sentido, era um
         exemplo extremo do seu tempo – que teima
         em valorizar o mérito pela ostentação de cada
         um. Entretanto morreu subitamente – como
         tantos outros artistas de sucesso ao longo dos
         tempos. Soube-se o que já se adivinhava: vi-
         via em grande sofrimento. Até para dormir era  satisfação. Estes últimos, nalguns casos, des-  feito a ser apontado. Afinal é esta capacidade
         anestesiado…                       tituídos de muito do conforto moderado que  que permitiu escrever todas estas histórias (e
            Este exemplo, medite comigo o leitor aten-  rodeia a maior parte de nós, acham felicidade  todas as outras, que guardo, na parte mais ín-
         to, serve para ilustrar dois factos bem reais: o  em coisas que outros tomam por garantidas. A  tima da alma).
         primeiro (e passe o lugar-comum) – dinheiro e  compra de uma casa, a compra de um carro   Na vida, esforço-me por aceitar a nossa qua-
         poder não são, nem nunca serão, sinal de fe-  (ainda que já com uns anos de uso), o suces-  lidade de seres frágeis e à mercê de uma exis-
         licidade. A este propósito, recordei um outro  so académico dos filhos e até coisas conside-  tência sempre curta e limitada pelas regras da
         caso que ainda hoje me atormenta. O caso de  radas triviais, como a fruta que se cria numa  natureza e de uma sociedade insensível, por
         um determinado marinheiro, provavelmente o  horta lá da terra, a “água pé” feita com as uvas  vezes mesmo selvagem, apesar de todo o seu
         marinheiro que menos pude ajudar, de tantos  da latada, todas estas pequenas coisas lhes en-  desenvolvimento científico. Aprendi, em espe-
         que conheci… Tratava-se de um jovem que  chem a alma.                 cial, a lamentar apenas as coisas verdadeira-
         nasceu no seio de uma família poderosa em   Parece portanto que quem tem objectivos  mente importantes: como o pôr-do-sol que não
         vários campos. Pai empresário, mãe herdeira  simples e atingíveis vive mais feliz. Claro, não  vi, algures no horizonte de um navio. Lamento
         de um império imobiliário. Veio para a Mari-  creio que quem nasce rico está condenado à  também não ter alma para abarcar os sons do
         nha, por insistência da mãe, porque a vida mi-  infelicidade. Acredito, isso sim, que aqueles  mar e não conhecer o poema, que ainda não
         litar o iria “endireitar”…         que são humildes de coração atingirão mais  escrevi. Lamento, por fim, não poder abraçar
           Contudo, nada se passou como o previsto, o  facilmente a felicidade, independentemente  aquele grande amigo que já partiu…e deixou
         nosso marinheiro depois de uma recruta algo  dos bens materiais que possuam. A felicidade  um vazio que não sei preencher, um sentimen-
         atribulada – que terá porfiado por cumprir -  é um estado que se vai construindo. Parece  to que muitos cantaram ao longo dos séculos
         sempre se revelou muito desajustado. Tinha di-  dar-se mal com a arrogância e a sobranceria,  como “saudade”. Contudo, estou certo de pro-
         ficuldade em cumprir tudo o que se lhe pedia.  comuns num tempo em que a incivilidade é  curar a felicidade no seu reino mais seguro: na
         Teve, como é previsível, muitos problemas dis-  regra e ser-se humilde é, para muitos, sinal de  intimidade do coração dos homens simples…
         ciplinares. Tal história, adivinhava-se então, só  debilidade. Talvez por isso encontro, na doen-  Esta é, concluirá o leitor a esta altura, uma im-
         poderia acabar mal. Assim aconteceu. Faleceu,  ça, atitudes muito diferentes. Aqueles que acei-  portante conquista…aquela que realmente ga-
         enquanto embarcado. A corveta, onde embar-  tam a dor da vida como fazendo parte das li-  rante satisfação e alegria…
         cámos os dois, havia feito uma escala técnica  mitações do ser humano (cuja vida é frágil e           Z
         nas Instalações Navais de Tróia. O nosso mari-  passageira), e outros, que, achando que têm a       Doc
                                                                              REVISTA DA ARMADA U SETEMBRO/OUTUBRO 2009  31
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