Page 321 - Revista da Armada
P. 321
HISTÓRIAS DA BOTICA (67)
O cantor, o marinheiro
O cantor, o marinheiro
e os simples… no coração
e os simples… no coração
magine o leitor um cantor muito conheci- nheiro, fruto dos seus muitos recursos, fez com vida na mão, entram em pânico ao menor sinal
do, do tipo mundialmente famoso. Imagine que lhe entregassem, ali mesmo em Tróia, uma de fragilidade, procurando fortaleza em ícones
Iagora que era (ou terá sido) extremamente moto de alta cilindrada – “Era para as desloca- vazios deste tempo moderno.
rico. Tinha quintas e criados. Tinha até a ex- ções, afirmava…” Nessa noite, enquanto regres- Na minha vida e prática pessoal contacto
centricidade de um zoo privado. Tinha passa- sava de licença teve um acidente grave. Faleceu com o sofrimento de muitos. Emociono-me
do por períodos de grande sucesso, alternado no Hospital de Setúbal no dia seguinte… muitas vezes com o sofrimento alheio, talvez
com outros de relativa opacidade. Da sua vida No meu dicionário pessoal aquele mari- mais que a maioria (…é um caminho que não
emanava, sobretudo, uma incapacidade para nheiro ficou como sinónimo de insatisfação. escolhi voluntariamente). No princípio lutava
se aceitar a si próprio. Senão vejamos: em pri- Para ele, tal como para o tal cantor falecido re- contra este forma de ser (por considerar, como
meiro lugar modificou o corpo até mudar o centemente, nada chegava. Era como se uma me dizem muitos, que é sinal de uma fraque-
seu aspecto étnico. Teve uma série de envol- parte do seu ser estivesse persistentemente va- za potencialmente usável contra o próprio).
vimentos com mulheres estranhas, dos quais zia. Ao contrário, encontro imensos humildes Com o tempo aprendi a aceitar essa parte de
resultaram filhos, que geneticamente não pa- para os quais a vida traz múltiplas fontes de mim, como uma qualidade não como um de-
recem ser seus… Entretanto fora acusado, oca-
sionalmente, de relações com crianças a ron-
dar a pedofilia…
Apesar do seu óbvio sucesso, aparentava
uma grande infelicidade. Afirmava, em entre-
vistas públicas, que tinha tido uma infância
infeliz, em que não se sentiu respeitado pela
família, particularmente pelo pai, que o mal-
trataria regularmente, até ao ponto crítico que
incluía a violência física regular…Era um ser
frágil. Preenchia o vazio através de objectos
(que publicamente comprava a preços exorbi-
tantes, numa quantidade que só era suplantada
pelo óbvio mau gosto). Neste sentido, era um
exemplo extremo do seu tempo – que teima
em valorizar o mérito pela ostentação de cada
um. Entretanto morreu subitamente – como
tantos outros artistas de sucesso ao longo dos
tempos. Soube-se o que já se adivinhava: vi-
via em grande sofrimento. Até para dormir era satisfação. Estes últimos, nalguns casos, des- feito a ser apontado. Afinal é esta capacidade
anestesiado… tituídos de muito do conforto moderado que que permitiu escrever todas estas histórias (e
Este exemplo, medite comigo o leitor aten- rodeia a maior parte de nós, acham felicidade todas as outras, que guardo, na parte mais ín-
to, serve para ilustrar dois factos bem reais: o em coisas que outros tomam por garantidas. A tima da alma).
primeiro (e passe o lugar-comum) – dinheiro e compra de uma casa, a compra de um carro Na vida, esforço-me por aceitar a nossa qua-
poder não são, nem nunca serão, sinal de fe- (ainda que já com uns anos de uso), o suces- lidade de seres frágeis e à mercê de uma exis-
licidade. A este propósito, recordei um outro so académico dos filhos e até coisas conside- tência sempre curta e limitada pelas regras da
caso que ainda hoje me atormenta. O caso de radas triviais, como a fruta que se cria numa natureza e de uma sociedade insensível, por
um determinado marinheiro, provavelmente o horta lá da terra, a “água pé” feita com as uvas vezes mesmo selvagem, apesar de todo o seu
marinheiro que menos pude ajudar, de tantos da latada, todas estas pequenas coisas lhes en- desenvolvimento científico. Aprendi, em espe-
que conheci… Tratava-se de um jovem que chem a alma. cial, a lamentar apenas as coisas verdadeira-
nasceu no seio de uma família poderosa em Parece portanto que quem tem objectivos mente importantes: como o pôr-do-sol que não
vários campos. Pai empresário, mãe herdeira simples e atingíveis vive mais feliz. Claro, não vi, algures no horizonte de um navio. Lamento
de um império imobiliário. Veio para a Mari- creio que quem nasce rico está condenado à também não ter alma para abarcar os sons do
nha, por insistência da mãe, porque a vida mi- infelicidade. Acredito, isso sim, que aqueles mar e não conhecer o poema, que ainda não
litar o iria “endireitar”… que são humildes de coração atingirão mais escrevi. Lamento, por fim, não poder abraçar
Contudo, nada se passou como o previsto, o facilmente a felicidade, independentemente aquele grande amigo que já partiu…e deixou
nosso marinheiro depois de uma recruta algo dos bens materiais que possuam. A felicidade um vazio que não sei preencher, um sentimen-
atribulada – que terá porfiado por cumprir - é um estado que se vai construindo. Parece to que muitos cantaram ao longo dos séculos
sempre se revelou muito desajustado. Tinha di- dar-se mal com a arrogância e a sobranceria, como “saudade”. Contudo, estou certo de pro-
ficuldade em cumprir tudo o que se lhe pedia. comuns num tempo em que a incivilidade é curar a felicidade no seu reino mais seguro: na
Teve, como é previsível, muitos problemas dis- regra e ser-se humilde é, para muitos, sinal de intimidade do coração dos homens simples…
ciplinares. Tal história, adivinhava-se então, só debilidade. Talvez por isso encontro, na doen- Esta é, concluirá o leitor a esta altura, uma im-
poderia acabar mal. Assim aconteceu. Faleceu, ça, atitudes muito diferentes. Aqueles que acei- portante conquista…aquela que realmente ga-
enquanto embarcado. A corveta, onde embar- tam a dor da vida como fazendo parte das li- rante satisfação e alegria…
cámos os dois, havia feito uma escala técnica mitações do ser humano (cuja vida é frágil e Z
nas Instalações Navais de Tróia. O nosso mari- passageira), e outros, que, achando que têm a Doc
REVISTA DA ARMADA U SETEMBRO/OUTUBRO 2009 31