Page 30 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (73)

                                               O Farol

Os lugares têm alma. Esse sentir pró-          mesmo só dentro de nós próprios. Os faróis       cidade que lhes reconheço. Ele (o Farolei-
         prio está acessível a muitos – espe-  são lugares de emoções…                          ro, como o vou designar neste escrito), por
         cialmente áqueles que vêem para                                                        outro lado, foi de uma diligência que muito
lá do evidente – e acrescenta à morfologia       Vivi nos Estados Unidos da América du-         me impressionou. Explicou os pormenores
comum das coisas um halo próprio quase         rante algum tempo, da minha adolescência.        históricos que interessam para a compreen-
sempre belo, único… Assim é, na minha tão      Nunca esqueci esse tempo. Morava numa            são total do Farol, alongou-se quanto baste
desacreditada opinião, como se sentem (…       cidade relativamente pequena, do interior,       pelos pormenores técnicos que explicam
ou se devem sentir) os faróis. Os faróis são   onde se não trancavam portas de carros ou        a mecânica antiga daquela estrutura e de
sempre lugares místicos. A sua localização,    casas… Uma América muito diferente dos           como evoluiu para a actualidade. Final-
normalmente, é especial. A sua história é      relatos violentos que Hollywood imortali-        mente e perante a curiosidade dos visitantes
muitas vezes recheada de acontecimentos        zou…Era uma cidade onde era fácil conhe-         estrangeiros, explicou, com alguma poesia
relevantes, frequentemente misteriosos, e      cer as pessoas pelo nome e onde, ainda hoje,     descritiva, que vida era a dele: a de farolei-
a sua função – alumiar e orientar quem         muitos anos volvidos, guardo muitos amigos       ro errante, com várias comissões em outros
anda perdido – constitui uma alegoria para     Este ano tive a visita de alguns desses amigos.  tantos faróis da costa portuguesa… Fazer
a Vida…em que cada um de nós procura o         Foi para mim uma grande alegria.                 melhor era, estou seguro, impossível.
seu caminho, a sua orientação no revolto
mar da existência…                               Estiveram no Algarve. Aí tentei mostrar-         Agradou-me compreensivelmente a con-
                                               -lhes o Algarve menos construído e decidi        duta daquele profissional da Marinha. Des-
  Já visitei muitos faróis. Sempre que estou   levá-los a Sagres. Gosto particularmente do      de logo, porque transmitiu uma imagem
na presença de um deles, passam-me, as-        Farol de São Vicente, que encaixa perfeita-      simpática e despretensiosa dos portugue-
sim, numa súbita clarividência, todas as vi-   mente num daqueles lugares de alma pro-          ses. Acrescentou-lhe ainda uma erudição
das que eles afectaram. Imagino os homens      funda, que atrás defini. Decidi, com grande       técnica, que impressionava e, qual cereja
que participaram na sua construção, em lo-     antecedência, solicitar superiormente uma        no topo do bolo, acrescentou um lado hu-
cais inóspitos (outrora certamente longín-     autorização especial para uma visita. Assim      mano, pessoal o bastante para que os meus
quos). Imagino o esforço que foi necessário    foi, no dia aprazado, lá fomos visitar o dito    amigos percebessem que, por detrás da far-
despender para manter as luzes acesas na       Farol. Estava um dia anormalmente calmo          da, havia uma pessoa, um ser humano…
escuridão dos tempos e ligação profunda        no Cabo de São Vicente: o sol brilhava e
dos faróis com o mar, desde sempre a seiva     não havia vento…                                   A imagem do Farol do Cabo de São Vi-
de Portugal…Os faróis são, na minha mente                                                       cente ficou largamente engrandecida pela
e nalguma escrita, locais de ódio e de amor.     O Faroleiro de Serviço, homem cordial,         atitude deste Faroleiro. Os espíritos do lo-
Lugares para partir e para chegar, ainda que   falava um inglês fluente, o que permitiu aos      cal também devem ter sorrido, desde as
                                               meus amigos encetar com ele uma conversa         almas dos monges que lá terão colocado
30 ABRIL 2010 U REVISTA DA ARMADA              aberta – muito típica da abertura e simpli-      as primeiras pedras, até aos muitos outros
                                                                                                faroleiros, que durante anos consecutivos
                                                                                                habitaram o lugar e, naquele dia específi-
                                                                                                co, haviam sido dignamente representados.
                                                                                                Nem o piar lúgubre das gaivotas que acom-
                                                                                                panharam o finar da tarde, nos seus voos
                                                                                                rasantes, exibindo eternos mantos nupciais
                                                                                                sujos pelo uso, diminuíram a minha alegria
                                                                                                íntima e o meu sentir secreto…

                                                                                                  Num local onde as rochas e as pedras
                                                                                                estão vivas, foi possível deixar uma marca
                                                                                                profunda no coração dos meus amigos. A
                                                                                                certeza de que Portugal tem lugares belos,
                                                                                                bem preservados e cuidados por pessoas
                                                                                                cultas, tecnicamente competentes, que pre-
                                                                                                servam a sua humildade, que é o mais fiel
                                                                                                sinónimo de humanidade… Diga lá o leitor
                                                                                                anónimo se qualquer outro cartaz turístico
                                                                                                podia ter sido mais perfeito…

                                                                                                  Ao Faroleiro em questão daqui vai um
                                                                                                “see you soon” com orgulho, por um tra-
                                                                                                balho acima e para além do estrito sentido
                                                                                                do dever…Vou continuar a escrever o sentir
                                                                                                dos faróis. É a minha triste sina, fortemen-
                                                                                                te criticável. Mesmo assim, arrisquei mais
                                                                                                esta revelação em prosa e mais um poema
                                                                                                – que guardo no silêncio das coisas não
                                                                                                ditas – gravado no promontório ousado de
                                                                                                onde os faroleiros, os homens do mar e os
                                                                                                poetas sentem o mar e a vida…

                                                                                                                                                   Z

                                                                                                                                            Doc
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