Page 30 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (15)

É proibida a leitura a quem não
  andar espantado de existir…

  …João Sem Medo (esgueirou-se) de                       las e tristezas inesperadas, talvez pudesse    plo mais pungente daqueles últimos são os
Chora-­Que-Logo-Bebes (e dirigiu-se) para                submeter o seu currículo a uma (das muitas)    que cultivam todos os terrenos livres à vol-
o tal Muro que cercava a floresta e onde                 faculdades de medicina ou de enfermagem        ta das cidades, junto às vias rápidas, crian-
alguém escrevera este aviso: É PROIBI-                   que agora temos. Quiçá, com tanta experi-      do hortas produtivas onde antes só haviam
DA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR                            ência, talvez fosse possível fazer medicina    baldios…Contudo, ninguém fala deles,
ES­ PANTADO DE EXISTIR…                                  em dois anos ou condensar os cinco anos        ninguém se espanta com o seu exemplo…
                                                         de enfermagem, em apenas um…Claro, não
                        In Aventuras de João Sem Medo,   vou ser egoísta, como os médicos são fre-        Trocámos, num ápice, a nossa crença nos
                           de José Gomes Ferreira, 1963  quentemente, e pensar só em saúde. Admito      tigres de papel que nos foram vendendo
                                                         também que alguém (um filho de pescador,       ao longo dos anos, pelos tigres do oriente,
Poucos livros me influenciaram tanto                     por exemplo) pudesse pedir créditos à Es-      a quem pedimos a mercê de nos socorrer.
      como o livro supracitado. Lido pela                cola Naval. Afinal já havia muita habilida-    Para Portugal (e particularmente para os
      primeira vez aos 14 anos, foi relido               de marítima e talvez fosse possível demo-      marinheiros desta terra) já não há novidade
vezes sem conta. De todas as vezes encon-                rar menos tempo a concluir a licenciatura?     nesta troca com países de cultura tão distan-
tro um significado novo, uma mensagem                                                                   te. Só é pena, afirmo-o seguramente, é a po-
importante, uma palavra ou frase, que de-                  A solução para esta crise, acredito pro-     sição em que agora nos encontramos. Passá-
finem sentimentos…Ora na verdade ando                    fundamente, depende muito de quem nos          mos do intercâmbio cultural e comercial de
“espantado de existir”, neste nosso país                 dirige mas também daquilo que formos ca-       antanho (muitas vezes de uma posição cul-
onde o rumo não parece muito diferente da                pazes de exigir a nós próprios. Durante anos   tural ou económica privilegiada), à súplica
“Chora-Que-Logo-Bebes” do meu herói de                   acreditou-se que a todo-poderosa Europa,       por mais uns milhares de patacas para nos
sempre: o João Sem Medo…                                 nos receberia no seu seio de braços aber-      livrar deste sufoco, em que voluntariamente
                                                         tos e estaria disposta a sustentar as nossas   nos enredámos…Lá se diz que na história e
  Estou espantado com um país em que só                  necessidades (e, claro, os nossos vícios). Já  na vida tudo tem o seu reverso…
os pobres podem perder “direitos adqui­                  vimos que não é assim. A Europa são alguns
ridos”, já que os adquiridos por quem tem                países a Norte, que produzem, e outros, a        Por isto (e por muito mais, que aqui não
poder ou influência são de pedra e cal.                  Sul, que basicamente consomem…Na mes-          cabe dizer) levo no ser grande espanto. Es-
Mais sólidos do que a Serra da Arrábida,                 ma medida em que os últimos deixam de          tou prestes a saltar o Muro, para lá deste
mais merecidos do que a ressurreição di-                 ter dinheiro para consumir, se vem finando     “salve-se quem puder” em que agora nos
vina, mais honestos (e inocentes) do que o               o ideal de fraternidade de quem produz…        encontramos. É um muro de mentalidade,
amor de mãe…                                                                                            que espero do fundo da alma, muitos este-
                                                           Portugal deixou de produzir, paulatina-      jam dispostos a saltar…
  Estou espantado de existir num país em                 mente, mas de forma segura, passámos a de-
que não parece haver bom senso de qual-                  pender de outros para as necessidades bá-        Saudações amigas, aos “espantados”navais,
quer tipo. Para salvar a pátria da bancarro-             sicas e não-básicas. Alguns já perceberam      como eu, que tiveram a coragem… para ler…
ta muitos são capazes de sacrificar aspetos              que tem que haver alternativas. O exem-
fundamentais (como o acesso de muitos aos                                                                                                                  
cuidados médicos), para proteger os interes-                                                                                                        Doc
ses de um setor bancário que já deu sucessi-
vas provas de se gerir pelo mais primordial
dos instintos: a ganância… Por outro lado,
outros mostram-se incapazes de satisfazer
quaisquer ajustes (por mais pequenos que se-
jam) e pretendem manter o status-quo, inde-
pendentemente da mudança de conjuntura.

  O que se revela, uma e outra vez, é uma
incapacidade para o consenso. Este, de
tanto adiado, já não se afigura crível nos
próximos tempos e creio bem (e não sou
o único), que com o refrão das diferenças
poderemos, nós também aqui em Portugal,
escrever a nossa versão da tragédia Grega,
que se arrasta lá para os lados do Pireu…

  “Faltam exemplos”, dirão muitos dos que
os que têm a paciência para ler estas pala-
vras. Faltam, faltam atitudes de humildade,
menos carros de luxo no poder, mais trans-
parência e menos licenciaturas conden-
sadas… Lembrei-me a propósito de apro-
veitar experiências práticas, de um senhor
barbeiro que trabalhou ali para os lados
de Azeitão. Homem versado em males do
corpo e da alma, tais como fleimões, fístu-
30 AGOSTO 2012 • Revista da Armada
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