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REVISTA DA ARMADA | 483
NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA 30
A vida
de marinheiro…
Hai cousas que nun podemos ber culs uolhos,
Mas podemos coincer cun outros sentidos.
Francisco Niebro, In L filico il nobiello, ediciones chinchin, Maio 2004
(Livro em mirandês, ilustrado por Sara Cangueiro)
Andava perdido, qual peixe em aquário lá lhe explicou a extensão das mudanças, estas pessoas, de outras culturas, de ou-
alheio. Procurava a Cardiologia, de olhos mas, rindo, lá foi dizendo, que naquele tros modos, como se sente a vida de ma-
esbugalhados, espantado no labirinto, es- navio fundeado longe do Tejo, se sentiam rinheiro… As marcas que dela ficam… O
tranho para ele, que constitui o Hospital dificuldades em antever o futuro… Como sentir da maresia… Mas calou-se perante
das Forças Armadas. Chovia. Chovia cada num navio em dia de nevoeiro cerrado na a imensidade da tarefa… e a solidão vazia
vez mais, como se todos os anjos decidis- saída de um porto longínquo, como aque- do processo…
sem chorar a uma só vez… impressionados les que ambos conheceram… E uma nos-
pelo sofrer dos portugueses… talgia profunda impôs então um silêncio Continuava a chover. Choveu muito na-
entre os dois. Silêncio só quebrado pelos quele dia… Fez bastante vento também. O
Não viu o médico chegar, mas este reco- trovões que se faziam ouvir sobre Lisboa, parque de estacionamento parecia o ca-
nheceu-o logo. Uma cara antiga, de uma em fúria sentida… nal entre o Faial e o Pico, em dia de In-
memória conhecida, a missão NATO na vernia…
Álvares Cabral. O Sr. Sargento mantinha Lá se despediram. O médico desejou
um sotaque carregado do Norte profun- boa sorte ao Sargento Marinheiro, velho Chovia muito naquele dia…
do, que nem os mais de 30 anos a viver conhecido de viagens passadas. Nos si-
na outra margem do rio, que na Marinha lêncios seguintes, sentiu saudades. Mui- Doc
divide o mundo importante, tinham mas- tas saudades, da maresia… do balanço…
carado. Coxeava, coxeava muito, de modo da distância… Passou ainda pela sala de
que não podendo escapar à borrasca, pa- espera e por corredores cheios de outras
recia um grumete na faina de proa, em dia caras e pensou que seria bom explicar a
de invernia… pingava por todos os lados…
O médico tinha uma ótima recorda-
ção da pessoa de então. Homem folga-
zão, meticuloso no trabalho… intrigava-o
a facilidade com que o médico de bordo
circulava entre o refeitório das praças, a
câmara de sargentos, com paragem na
cozinha, até atingir a câmara dos oficiais.
Convidou o 1º Tenente para várias ” jorna-
das de luta”, a navegar, em que pão com
chouriço e vinho lá da terra matavam a
saudade da família… Sentiu-se, antes de
falarem, que teve prazer em rever o mé-
dico, porque há “coisas que não podemos
ver com os olhos, mas podemos conhecer
com outros sentidos…”, como se diz acima
em mirandês… uma língua daquele Nor-
te, lá mesmo em cima no sentir da alma
portuguesa.
Espantou-se com a magreza atual do clí-
nico – agora, ficou a saber, menos dado
aos convívios do antigamente. O médico
perguntou-lhe pela vida. Tinha uma artro-
se precoce. Sequela de um mítico jogo de
futebol na península da Troia amiga, local
de repouso quando as Corvetas eram o
seu lar, como também foram para o mé-
dico… Vinha fazer um eletrocardiograma,
como parte da rotina pré-operatória, para
a implantação de uma prótese articular…
Quis saber qual era o papel do médico
de marinha, ali naquele lugar… o médico
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