Page 31 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA REVISTA DA ARMADA | 486
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O MARINHEIRO... O PASTOR…
AS PESSOAS…
E OS QUE FIZERAM A GUERRA.
…Mas porque não deixa você de escrever durante uma temporada, para descansar?
— perguntava-me hoje alguém. — Porque era a mesma coisa que um crente deixar
de rezar um mês ou dois, por higiene…
Miguel Torga, 1942
Parecia retirado do romance “os Bichos” ciólogo Boaventura Sousa Santos e colabo- parece estranha agora). A frase que apren-
de Miguel Torga. Homem antigo, tronco radores. Com lugar de honra reservado, lá di nesse dia “nós somos as vítimas justas de
largo como um pinheiro manso, barbas gri- vi o filme, que estará a ser apresentado pe- uma guerra injusta”, dá corpo ao sofrimen-
salhas, boné de flanela na cabeça e botas, las escolas deste país. É um documentário to daqueles homens e das suas famílias….
gastas, de cano alto… e é claro, um cajado extenso com entrevistas a deficientes das
na mão. Não fosse o Lumiar, em Lisboa, e forças armadas, que descrevem na primeira Ora, das pessoas que conheço, pelo exer-
admitiríamos que estávamos na presença pessoa, a sua experiência na guerra colonial. cício da profissão, os pastores, as “tias”, as
de um pastor, cujas ovelhas repousavam esposas, as filhas… junto agora outro gru-
na “porta de armas” (um estranho nome No filme retratam-se também as suas ex- po de seres distintos… são os que fizeram
que ainda se atribui à segurança do Hospi- periências no regresso, feridos, física e men- a guerra. Não a guerra das palavras, ou dos
tal das Forças Armadas, que já merecia não talmente… Alguns dos entrevistados estavam debates, nas quais o nosso país se tornou
ser uma base militar…). presentes na sala, o que acrescentou emoção mestre, mas a guerra do sangue, minas e
ao momento, muito para lá do simples fil- balas…. Verifiquei que para eles a guerra
O nosso “pastor”, vou apelidá-lo assim me… No tempo atual de números, deficits e continua, no corpo e na alma. O seu sofri-
neste escrito, lá guardava a sala de espe- tróicas, parecia uma descrição surreal, onde mento, bem patente no filme, requer uma
ra, “firme e hirto” no seu posto, de pé de factos que nunca deveriam ter acontecido se aceitação pessoal, que anula as palavras,
olhar longínquo e um ar digno. De entre o materializavam nas nossas almas, quais vozes mesmo as dos políticos mais eloquentes.
seu rebanho, sentada na extrema esquer- de um mundo escondido… e esquecido….
da, uma senhora loura para lá da sua ida- Quereria ter voz, para dar sentido ao sofri-
de, abusava dos “vocês”, na naquele lin- Meditei nos dias seguintes sobre o pre- mento íntimo que, senti, ainda carregam….
guajar da “Linha” mais fina de lisboa, ou- ço que uns quantos pagaram, por valores Não sou, contudo, poeta para tanto. Deixo
vindo-se balbuciar apressadamente…. atualmente apagados, proscritos mesmo. -os com um portuguesíssimo “bem-hajam”,
Os mesmos que haviam sido politicamente pelo convite, pela lição… e pela inspiração….
“Olhe filha”, ali vai um marinheiro…. endossados como essenciais à sobrevivên-
Exclamou surpresa! cia da nação portuguesa, particularmente Doc
da sua componente ultramarina (a palavra
Tratava-se de um oficial no seu 3B re-
gulamentar, que ao presente, atravessa-
va o corredor do Centro de Medicina Ae-
ronáutica – o lugar atual de trabalho des-
te escritor sem jeito….
Naquele mesmo dia conheci ainda a mu-
lher do Sr. Cabo, homem baixo, de ar so-
turno, impedido de falar pela mulher, que
insistentemente lhe reservava as piores
doenças, recheadas dos piores prognósti-
cos… A filha, bonita, do Sargento a quem a
Hipertensão tinha precipitado o castigador
AVC, que também o impedia de dizer de
sua justiça… O rapaz, angustiado, que pre-
tende continuar ao serviço dos Comandos,
apesar da taquicardia, que agora o aflige…
Sentia-se na alma, aquele adágio popular:
“todos diferentes, todos pessoas”. Na ver-
dade, ser médico é conhecer a vida, íntima
de pessoas, que deixam de ser estranhos….
Mais tarde, naquele mesmíssimo dia, fui
representar a Direção do Hospital das For-
ças Armadas, num evento organizado pela
Associação dos Deficientes das Forças Ar-
madas (ADFA). Tratava-se da apresentação
de um filme produzido pelo reputado so-
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