Page 31 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA                                                                REVISTA DA ARMADA | 487

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A CONSULTA E O SILÊNCIO

A veces me elevo, doy mil volteretas           A consulta acabou. Passei os comprimi-      Na emoção do momento um nevoei-
A veces me encierro                          dos habituais a pedido daquele marinheiro   ro súbito, em paroxismo salgado como o
Tras portas abertas                          grisalho e ele saiu. Ocorreu-me então que   mar, assaltou-me a alma e a vista, na re-
A veces te cuento                            não percebi bem quem havia sido consul-     visão de tanta luta, tanto sofrimento e,
Porque este silencio                         tado, o paciente, ou o médico? Continuei,   tantas vezes, tanta incompreensão que
                                             a partir daí mais apressado ainda, mas com  é prima maior da desesperança… Tra-
In Quando Nadie Me Ve                        uma razão e um propósito que até então      tou-se, compreenderá o leitor anónimo
Alejandro Sanz                               não me haviam surgido, naquele dia. Tudo    e paciente, de uma entidade diagnóstica
                                             pareceu fazer um sentido diferente, ao      estranha conhecida na gíria como um pi-
Às vezes acontece… os pacientes tor-         mesmo tempo real e esperançoso…             ripaque, ou um chelique, que atinge ape-
    nam-se amigos e são amigos pacien-                                                   nas mulheres sensíveis, velhos lobos-do
tes. Ora, era um daqueles dias em que          Mais tarde, quando fiquei sozinho na       -mar solitários e, claramente, escritores
tudo corre mal, o carro não pegava. Um       sala de consulta do Hospital das Forças     sem grande valia…
sensor avariado, a ignição negou o gesto     Armadas… num “silêncio onde já nin-
costumeiro… a ausência de vida do mo-        guém me vê” e “onde me encerro de por-        Ao final do dia, todavia, a verdade lím-
tor… o reboque… o atraso… os telefone-       tas abertas” como diz o poema acima…        pida e cristalina impôs-se-me no ser como
mas… No gabinete, o computador, o inter-     saltou-me na mente a minha própria his-     um sólido monumento. Apesar de tudo,
locutor imposto mais assíduo do médico       tória (bem guardada em sítio recôndito      tanta guerra, tanto perigo, tanto sofri-
moderno, teimava também em não arran-        em mim próprio), que aquele marinhei-       mento, fica uma certeza que vale para to-
car, as receitas não fluíam… a sala de es-    ro quase anónimo sabia de cor e tirou       dos os que em si próprios se encontram
pera fervilhava…                             da prateleira elevada, longe do alcance     e nunca desistiram da verdade. Não me
                                             alheio, onde a guardo. Nesse silêncio en-   vendi ao veneno no olhar com que, amiú-
  Entrou de mansinho, não vi ninguém sen-    contro o vento, libertador, a chuva, ami-   de, a vida teimava em condenar-me. Não
tar-se na minha frente, pois lutava com to-  ga, capaz de lavar até a alma mais triste   perdi a humanidade…
das as forças do meu ser contra a máqui-     e as vozes, surdas e possantes, de tantos
na informática, num choque de titãs desi-    poetas, tantos escritores, cujas palavras                                                           Doc
gual…Tratava-se de um cavalheiro grisalho,   preenchem o vazio mais profundo e dão
com uma barba que o fazia parecer mais       sentido ao viver… mesmo quando nada
velho do que os cerca de 70 anos, que de     parece fazer sentido.
facto tinha… Comentei que não o conhe-
cia… informou-me que foi marinheiro e que
há muito estava distante dos médicos…

  Informou-me seguidamente que, ao
contrário, sabia bem quem eu era… Sabia
que tinha estado em muitas missões, mui-
tos navios. Sabia que nunca “tropecei em
guias-de-marcha” no que diz respeito aos
embarques. Sabia que durante anos fui
“mal compreendido” (para usar o seu pró-
prio eufemismo) por alguns no antigo Hos-
pital da Marinha e que havia efetuado um
desterro, longo de sete anos, no Centro de
Medicina Naval, no bem-amado Alfeite…
Sabia que tenho um filho com uma doen-
ça crónica, melhor atualmente, mas sem
esperança de recuperação total… Contudo,
ficou surpreso quando, na Revista da Arma-
da, viu um oficial médico fardado, numa ce-
rimónia de futuros médicos. Informou-se
junto dos amigos... percebeu que passei a
ser também professor de médicos…

  E, então, sempre com uma voz mansa
e perante o meu olhar surpreso, lá con-
cluiu mansinho:

  – O doutor é persistente, tiro-lhe o
boné naval… E sorrindo, coisa que até aí
não tinha feito, terminou num silêncio
que durou segundos, embora na minha
alma tenham parecido longas horas…

  Naquele silêncio e depois daquela con-
versa, num repente, todas as batalhas, to-
dos os sofrimentos, me passaram pelo es-
pírito… a ponto de o dia se dividir entre
duas partes: o antes da chegada daquele
paciente e o depois…

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