Page 31 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA                                                                                                REVISTA DA ARMADA | 500

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OS HOMENS DAS ESTRELAS

“...A primeira coisa que demorei algum tempo a habituar-me foi ao facto de não ter asas. Pelo menos, asas com penas...”
In Diário de Um Anjo da Guarda”, Carolyn Jess-Coke, 2011.

Soube que tinha discretamente desaparecido, discretamente,           to não ter eu próprio encontrado as palavras para explicar tais
    como sempre viveu. Era meu conhecido de longa data. Era o        sentimentos… As palavras têm vida própria. Servem para elevar,
marinheiro que tinha um filho como o meu... um autista…              ou para diminuir. Por uma palavra se vive e, por outras, apetece
                                                                     morrer. Por isso, temos que ser cuidadosos, com o seu uso.
   Sem nunca exprimir diretamente esta ideia, penso que os dois
acreditávamos que havia, genericamente, dois tipos de pessoas,         Imagino que este antigo homem do mar gostaria de saber que
ou se quiser o leitor, dois tipos de pais, aqueles com filhos sau-   vou agora começar o Curso das Estrelas, pois era genuinamente
dáveis e os outros. Tínhamos, portanto, muitas afinidades, que       meu amigo. Se o encontrasse, depois da boa notícia, talvez tives-
ficavam no silêncio, comum, de quem partilha as mesmas expe-         se em mim a coragem para lhe perguntar pelo seu filho desigual
riências.                                                            e lhe explicasse tudo o que este lhe poderia trazer. Talvez até lhe
                                                                     fizesse sentir que, em dias de nortada, o Homem das Estrelas que
   O autismo, em todo o seu espetro, tem uma incidência cres-        partilha agora a minha vida se tornou a minha assinatura, naque-
cente sem ninguém saber exatamente porquê. De forma simples,         la parte do ser que ousa olhar para lá da mortalidade.
trata-se de uma forma de estar, em que a rotina é todo-poderosa,
arrebatadora mesmo, no sentido em que se procura por todas             Talvez o meu amigo acredite agora, como eu já sei há algum
as formas a repetição nas coisas simples. Nas formas mais gra-       tempo, que nem todos os anjos têm asas. Nalguns casos temos
ves, as pessoas estão completamente isoladas do mundo, presas        que acreditar, profundamente, que podem até parecer-se con-
em si próprias, por maneirismos e sons incompreensíveis. Nou-        nosco, repetir vinte vezes a mesma coisa, vestir sem botões,
tros casos, a perturbação social não é tão intensa, mantendo-se      acreditar que todas as pessoas são boas e sorrir, sem maldade,
sempre o caráter obsessivamente repetitivo das ideias, limitador,    quando nos vislumbram na distância…
contudo, de uma vida de relação dentro do que definimos como
normal.                                                                Sei que haverá alguns anjos com asas, mas estas não têm pe-
                                                                     nas… Algures no seu crescimento para as estrelas, deixaram-nas
   Este marinheiro tinha muitas mazelas físicas. Custava-lhe ter     para simples homens como nós, imperfeitos, mais preocupados
tido assim um filho tão estranho e que tanto peso lhe havia tra-     com o nosso pequeno mundo assimétrico.
zido à vida. Procurou-me múltiplas vezes para a ajuda que o meu
mister podia trazer. Afinal, também eu aceito nuns dias melhor         Agora sim, partilhei a minha alma, com este Marinheiro. Na
que noutros ter um filho assim… o meu Homem das Estrelas…            viagem de todas as certezas, poderá finalmente ter a ousadia de
                                                                     um sorriso…
   A primeira coisa, aliás, que se aprende com estes Homens das
Estrelas é a aceitação. A aceitação das diferenças dos outros.                                                                                                Doc
Aprendemos, nós também, que não somos nós próprios o prin-
cípio e o fim, o alfa e o ómega, não somos omniscientes, nem
estamos sós… Aprendemos que a tentativa de, humildemente,
fazer o melhor todos os dias já é uma grande capacidade, um
grande feito…

   Com o meu Homem das Estrelas aprendi muito. Para começar,
reconheci que os Concertos Brandeburgueses de Sebastian Bach,
são certamente a melodia mais bela do Mundo. Ou que na voz,
islandesa, dos Sigur Ros, ininteligível para a maioria, cabe todo o
sentimento de uma vida… Aprendi, mesmo, quando o medo não
me vence, que apesar de toda a perseguição e de todo o sofri-
mento (de que o mundo é farto e de que todos somos vítimas),
também há justiça…

   Tenho pena da partida do meu amigo e conhecido. Não sei
se ele alguma vez compreendeu completamente o Homem das
Estrelas, que com ele partilhava a vida. Creio que lá onde se en-
contra também se terá apegado a uma Estrela, que lhe tornou
límpidas estas verdades, que para mim são certezas. Só lamen-

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