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ESTÓRIAS 20
SUSPENSE A BORDO DO NRP S. MIGUEL...
ONRP S. Miguel, tão pouco querido na Armada, apenas viveu S. Miguel atracado em P. Santo durante a Maré Negra que assolou o Arquipélago em 1990.
connosco de 1985 a 1993. Não era mais que um navio mer-
cante, quase em fim de vida, frequentemente apelidado, de forma A regeira continuou encapelada, presa noutra espia no mesmo
obviamente depreciativa, de “Ferrugem ou de “Cascão”. cabeço, e o único homem a manuseá-la no cais tardou demasiado a
retirá-la, só o conseguindo após obter o auxílio de um outro.
Depois de ter sido posto a operar, graças à persistência do seu
primeiro comandante – o Cmdt. Oliveira Costa, acabou por se re- Entretanto, o navio, impedido de sair a ré pela espia ainda passa-
velar um muito útil Navio de Apoio Logístico ao longo das múltiplas da a terra, foi abrindo… e abrindo de popa empurrado pelo vento
missões que efectuou no Continente, nas Ilhas e no estrangeiro, as fresco do lado do cais.
últimas das quais na Guerra do Golfo em 1991, como única partici-
pação militar portuguesa, sob o comando do seu terceiro coman- Quando finalmente se conseguiu desencapelar a regeira e libertar
dante – o Cmdt. Rodrigues da Conceição. o navio para pôr a máquina a ré, o navio estava já fazendo um ângu-
lo de cerca de 45o em relação ao cais, continuando sempre a abrir,
Operá-lo envolvia um desafio constante para se conseguir ultra- sendo o vento o único que decidia naquela situação inesperada.
passar as inúmeras limitações e avarias no cumprimento das mis-
sões, exigindo grande dedicação, entreajuda e espírito de equipa A máquina não podia ser posta a ré pois tínhamos à popa os bai-
que se fomentava junto da sua muito escassa guarnição, procu- xos de pedras, nem a vante contra o cais. Utilizando apenas o leme
rando mostrar a importância de cada um, e incutir orgulho no seu e a máquina alternadamente AV e AR, iniciou-se então uma luta
“diferente” navio. titânica tentando contrariar a influência do vento sobre o navio. En-
quanto isto, o Oficial Imediato, debruçado na popa do navio, pers-
Na realidade, quem gostava mesmo deste navio era apenas crutando o fundo de águas claras, gritava-me pelo intercomunica-
quem lá prestava serviço. dor para não usar a máquina nem descair a ré pois inevitavelmente
tocaria com o hélice nas pedras do fundo.
Mas vamos aos factos, com o S. Miguel atracado por EB no Cais
de Porto Santo, porto acanhado para rodar o navio utilizando Mas foi assim mesmo, com a máquina avante devagar, obrigando
apenas os próprios meios. Por isso por norma o atracava directa- a proa a deslizar ao longo do cais, e com o navio perpendicular a ele,
mente. Preparava-me pois para desatracar saindo a ré, operação que eu saí o porto, desta forma tão pouco ortodoxa.
relativamente fácil, embora necessitando de execução rápida e
decidida, para evitar que o vento lhe pegasse logo que deixasse de E foi com enorme alívio que a guarnição viu finalmente a proa do
estar ao abrigo do cais. navio ultrapassar o farolim do extremo do cais, e poder sair a vante
e safo com todo o leme a estibordo.
Apesar de a operação ser para mim já rotineira neste porto, tal
como sempre fazia antes de todas as fainas de largada, percorri o Pude assim medir a boca de entrada do porto com o comprimen-
cais ao longo de todo o navio, não apenas para observar as suas to do S. Miguel e fiquei a saber que tinha mais de 110 metros. Não
mazelas exteriores mas principalmente para verificar as espias e toquei no fundo… e safei-me tangencialmente daquela ingrata si-
seu encapelamento, e perceber a existência de corrente e vento, tuação.
concentrando-me na forma de fazer a manobra, pré-visualizando-
-a. A dificuldade em manobrar este velho cargueiro de um só héli- E quem a viveu de perto dificilmente dela se esquecerá. Mas mais
ce já nessa altura me era familiar, e já nem sentia inveja do “LOBO uma vez surpreendi-me ao constatar que em situação de risco e
MARINHO”, navio-ferry que fazia a ligação Funchal-P. Santo, com grande stress a minha reacção se rodeou de grande calma.
os seus vários lemes e hélices laterais que lhe permitiam rodar em
qualquer diminuto espaço. A consciência do risco ultrapassado e o aperto de estômago sur-
giram bastante depois.
O tempo estava bom, com vento fresco dos quadrantes de sul,
portanto a afastar do cais. Apitado à faina, dei ordem para largar Brito Subtil
as espias de vante e de popa, e de seguida a regeira de ré, tendo CMG
ficado passada ao cais apenas a regeira de proa.
N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
Sublinho que uma das dificuldades nas manobras de faina deste
navio consistia no manuseio das suas volumosas e pesadas espias,
sempre agravado pela sistemática escassez de pessoal de apoio
no cais. Mais que conhecida era também a sua vulnerabilidade à
corrente e ao vento, fruto das suas elevadas estruturas e reduzido
calado quando vazio. Aguardei um pouco antes de dar ordem para
largar a regeira de vante, até ver o navio abrir de popa com o ven-
to, e não seria sequer necessário ajudar com a máquina a vante
sobre a regeira, de forma a abrir e poder sair a ré Meia-Força.
Dei então ordem para “largar tudo”… Mas aconteceu o impre-
visto…
28 MARÇO 2016