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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA REVISTA DA ARMADA | 505
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ODE A UM TEMPO EM QUE “O PODER DA PALAVRA
POSSA VENCER A PALAVRA DO PODER…”
…E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando…
In Os Lusíadas de Luís de Camões, Canto I Nesse dia, na corrida que faço ao fim da tarde, cumprimentei o
avião que está junto à pista, saudoso do tempo em que era livre e
Soube de imediato que não seria apenas mais uma palestra. Co- voava, de um modo diferente, e respondi com alegria redobrada ao
nhecia o palestrante desde há muito. Tive, na minha vida naval, piar estridente de um pavão, um habitante comum daquela casa de
a felicidade de ouvir várias das suas palestras, como aconteceu com ensino, que se preparava para atingir o seu posto noturno de vigia, no
muitos outros militares. Aprecio várias características na sua perso- alto de uma árvore alta, protegido das investidas de tigres lendários,
nalidade, das quais a humildade é a que mais valorizo. Aprecio tam- da Índia dos seus antepassados… que ainda não esqueceu. Nem a
bém o amor que revela pela pátria (sentimento antigo, desusado no chuva nem o vento me incomodaram. Trazia apenas a alegria de ter
tempo que passa), aprecio ainda o apreço evidente pelos militares privado com alguém assim, de alma livre…
em geral e pela Marinha em particular. Guardo na alma, com for-
te emoção, uma palestra em que descreveu sem despudor as suas Ora, sei que no tempo Romano houve uma muralha extensa, que
origens humildes e o facto de sentir a necessidade de visitar os pais atravessava a largura da Grã-Bretanha, conhecida pela Muralha de
na sua derradeira morada, por razões próprias da solidão da alma, Adriano, o nome de quem a mandou construir (o Imperador Tra-
que só dizem respeito ao próprio, raramente reveladas… Razões da jano Adriano). Essa muralha, dividia o mundo dito civilizado (o dos
mesma estirpe também me assistem amiúde, nesta colina de silêncio Romanos) de um mundo selvagem e cheio de perigos, sem ordem.
e poesia em que construí a minha vida. Por outro lado, o Professor Ocorreu-me, ainda nesse dia, que este palestrante, que partilha o
palestrante quebrou várias vezes o tabu de revelar o seu catolicis- nome daquele imperador, também tem sido uma muralha que ten-
mo, que acredito ser apenas outra forma de dizer que existem outras ta preservar a civilização, num mundo cada vez mais incivilizado. Ele
entidades mais importantes do que a nossa própria existência. Esta pertence àquele grupo de pessoas, como diz Camões, que já se liber-
é uma atitude ousada, num tempo em que falar publicamente de tou por obras valorosas…
religião equivale a usar uma gabardina do nosso pai, antiga e fora
de moda… Ora eu, na minha humilde insignificância, tenho ainda a Demorei um pouco (enfim, mais do que é costume) a produzir
ousadia íntima de acreditar que o Novo Testamento é um livro revo- este texto. Afinal, quem sou eu para elogiar alguém tão reconheci-
lucionário. Tão revolucionário que, acredite o leitor paciente, afirma do? Depois cresceu-me na alma uma voz antiga, que me sussurrava
mesmo que todos os humildes serão exaltados e que a aceitação da- em criança, informando que se vamos dizer de bem, enfim elogiar,
quilo que não podemos mudar eleva o nosso sentir mais profundo…. podemos e devemos dizer o mais possível, sem vergonha ou castigo
Estas simples noções, esquecidas, permitem mesmo que cresçamos previsível. Ao contrário, quando dizemos (ou pior escrevemos) mal
naquilo que tantos afirmamos ser: permite que sejamos humanos… de alguém, devemos primeiro olhar para nós próprios, para as nos-
sas faltas e só depois de alguma meditação falar, mesmo assim com
Ora hoje o tema versava as Nações Unidas e a atual Ordem Mun- delicadeza, pois erramos todos. Acredito que se na vida cumprirmos
dial. Como sempre, a erudição da palestra, apresentada com a clare- com estas regras, teremos contribuído, como disse o Professor que
za e simplicidade habituais, cativou de imediato a audiência. Ficámos defende a civilização tal como (ainda) a conhecemos, para que o “po-
a saber que Ordem Mundial parece haver pouca, disso são prova os der da palavra possa suplantar a palavra do poder…”
conflitos contínuos e muitas vezes sem objetivos claros. Percebemos,
também, que a ausência daquele tempero chamado “bem comum” Só lamento não poder aqui afirmar, com ele, que sou transmon-
faz que da cozinha do poder mundial saiam sabores amargos para tano… Todavia, digo-lhe daqui que, no entendimento que ele trans-
todos… Ficou ainda bem explícita a miopia, apesar das capacidades mite, talvez eu seja pelo menos transmontano na alma. Finalmente,
dos melhores óticos modernos, revelada por decisões que muito ocorreu-me agora com alguma preocupação a certeza de que ou-
influenciam a Ordem Mundial (no fundo, decisões que influenciam tros, mais cultos e conhecedores, saberiam tratar o tema e a pessoa
profundamente as nossas vidas). em causa bem melhor do que estas palavras simples conseguiram.
Àqueles as minhas sinceras desculpas; ao palestrante, fica um grande
O debate, que normalmente no IESM1, agora IUM2, sucede às pa- bem-haja… que é uma expressão genuinamente portuguesa.
lestras, foi rico de informação, sempre com um misto de proximida-
de, conhecimento profundo e simpatia intrínseca, a que ninguém Doc
ficou indiferente. Fica-se com a ideia de que o palestrante em ques-
tão teria muito mais para dizer e que nós todos, ouvintes, queríamos Notas
conversar mais, saber mais… A palestra terminou para todos com um
sentimento de que valeu a pena, que nos fez bem ouvir alguém assim 1 IESM – Instituto de Estudos Superiores Militares
tão profundo, tão sabedor… Um sentimento que já muitos haviam 2 IUM – Instituto Universitário Militar
experimentado com o palestrante em causa.
MARÇO 2016 29