Page 30 - Revista da Armada
P. 30
REVISTA DA ARMADA | 523
NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA 64
Os fuzileiros e o médico: um autorretrato
Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar, leiros, abdicaram de alguma parte de si próprios e do seu conforto
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar pessoal, para servir.
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida, Toda a minha vida técnico-profissional foi feita como marinheiro,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida. porque mesmo nos meios civis, nos congressos, na faculdade, na
Fernando Pessoa, Poesias - Ortónimo exposição pública, todos me reconhecem como “da Marinha” e, com
os anos, essa segunda pele é a minha. Também, no lugar donde hoje
ada artista, em determinada fase da vida, tem a tentação de fazer escrevo e medito, sinto a falta da maresia, desse Tejo, que por vezes se
Cum autorretrato. Alguns ficam famosos, como é um exemplo apresenta longínquo…. Ora deste lugar de promontório, nesta ponte
reconhecido, o autorretrato de Van Gogh, ou alguns dos retratos de de um porta-aviões ancorado, onde agora me encontro, nem sempre
Leonardo Da Vinci. Também, ao longo dos séculos, vários escritores e se percebe o caminho, nem sempre é possível antever o futuro, pois
poetas tiveram a ousadia de escrever sobre si próprios. E, sim, é ver- não depende apenas da bússola naval.
dade, cada artista reflete no seu trabalho muito de si próprio… Percebi então que, este nevoeiro, que a mim me confunde, deve ser
Aconteceu recentemente, na Escola de Fuzileiros, uma importante quase impenetrável para os médicos mais jovens, dos vários ramos,
cerimónia para imposição de boinas aos novos fuzileiros navais e eu, que agora partilham de certo modo o mesmo futuro. A esses, na tur-
por cortesia de um grande amigo, fui em boa hora convidado. Na ver- bulência do momento, será certamente difícil construir um conjunto
dade, desde há muito que tenho um grande respeito pelos fuzileiros. de valores, um mote, digo mesmo uma “lenda pessoal”, que os ligue
Esse respeito ficou-me gravado na alma, quando com eles partilhei a um projeto comum, algo novo na história do nosso país: uma saúde
algumas missões, umas em situação de proximidade, outras em luga- militar conjunta. Deste modo de estar, da defesa dos seus valores, do
res exóticos e longínquos, como Timor Lorosae. Estas últimas foram apego ao seu modo de vida, da sustentação da sua “lenda”, deram
especialmente marcantes. Tal como ficou bem patente nas palavras, (…e suspeito que darão sempre) boa conta os fuzileiros naquele dia
naquela cerimónia, os fuzileiros demonstraram então que são mili- feliz, que ficará nas suas vidas.
tares inteiros, imbuídos de valores humanitários raros para o tempo Ouso daqui afirmar que, do mesmo modo, enquanto não for possí-
presente, constituindo um crédito vivo para os valores que o azul vel afirmar um conjunto de valores, comuns a todos os médicos das
naval representou e representa. Forças Armadas, que se associem à carreira médica, será muito difícil
Depois, pelo decorrer da cerimónia, pelo fluir dos acontecimen- assegurar um corpo médico estável e, porque não dizê-lo, feliz e moti-
tos, pelo respeito demonstrado pelos ex-fuzileiros, representados no vado. Os médicos, como qualquer ser humano, precisam de saber que
desfile das forças em parada, e pelo profundo respeito demonstrado estão a construir um caminho que reconhece o esforço de cada um,
pelos ex-fuzileiros que partiram em missão, mas nunca regressaram, que premeia a dedicação, que é equilibrado e justo. Só assim, também
senti uma emoção profunda. Talvez todo este sentimento tenha sido eles, poderão manter a ligação à vida militar e aceitar construir a sua
potenciado – naquela luminosa manhã – pelo cheiro do mar, que a vida, a sua própria “lenda pessoal”. Os fuzileiros construíram, muitas
maré baixa impunha, pelos cumprimentos dos muitos fuzileiros que vezes com sangue e lágrimas, a sua própria lenda. Esse conhecimento
me reconheceram, ou muito simplesmente pelo sentimento que é o cimento comum que parece uni-los, com mais força que o mais
me perpassa, desde que estou fora da Marinha – o de que (como na forte cimento. Daí que “fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre” não
poesia acima) estou na “orla da praia”, de certo modo distante e ao seja um mote simples, ou um jargão repetitivo, é a força de uma vida.
mesmo tempo muito perto. Posso afirmar que saí cheio de saudades, imbuído da melancolia
Foi então, logo e ali, entre amigos, novos e velhos, entre fuzileiros, que os marinheiros sentem quando deixam o mar. Este sentimento
que fiz o meu autorretrato naval: pertenço ao grupo de médicos que parecia anunciado pelos sons, gritantes, das gaivotas e outras aves de
ficou. Aqueles que, de algum modo, tal como acontece com os fuzi- grande porte, que demandavam a pista de lodo em Vale de Zebro,
naquele dia.
Aqui, na orla desta praia, não tenho que
me lamentar, a vida e a Marinha contribuí-
ram para que eu pudesse crescer assim,
com esta voz sentida, por vezes longín-
qua, por vezes próxima, que me trouxe a
este lugar de emoções onde sempre me
encontro. Uma ilha onde o azul predo-
mina, o azul do céu e o azul do mar, entre-
cortados por singelas figuras camufladas,
afirmativas do alto das suas boinas e das
suas almas, que me honraram, hoje como
ontem, com a sua amizade.
Um abraço sentido aos meus amigos
fuzileiros, desse lugar de emoções e
poetas, que sem autorização, ou grande
mérito, amiúde visito.
Doc
30 NOVEMBRO 2017