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REVISTA DA ARMADA | 523


          NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA                                                                        64

          Os fuzileiros e o médico: um autorretrato





          Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,      leiros, abdicaram de alguma parte de si próprios e do seu conforto
          Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar     pessoal, para servir.
          Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,      Toda a minha vida técnico-profissional foi feita como marinheiro,
          E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.     porque  mesmo  nos  meios  civis,  nos  congressos,  na  faculdade,  na
          Fernando Pessoa, Poesias - Ortónimo                 exposição pública, todos me reconhecem como “da Marinha” e, com
                                                              os anos, essa segunda pele é a minha. Também, no lugar donde hoje
            ada artista, em determinada fase da vida, tem a tentação de fazer   escrevo e medito, sinto a falta da maresia, desse Tejo, que por vezes se
         Cum  autorretrato.  Alguns  ficam  famosos,  como  é  um  exemplo   apresenta longínquo…. Ora deste lugar de promontório, nesta ponte
          reconhecido, o autorretrato de Van Gogh, ou alguns dos retratos de   de um porta-aviões ancorado, onde agora me encontro, nem sempre
          Leonardo Da Vinci. Também, ao longo dos séculos, vários escritores e   se percebe o caminho, nem sempre é possível antever o futuro, pois
          poetas tiveram a ousadia de escrever sobre si próprios. E, sim, é ver-  não depende apenas da bússola naval.
          dade, cada artista reflete no seu trabalho muito de si próprio…  Percebi então que, este nevoeiro, que a mim me confunde, deve ser
           Aconteceu recentemente, na Escola de Fuzileiros, uma importante   quase impenetrável para os médicos mais jovens, dos vários ramos,
          cerimónia para imposição de boinas aos novos fuzileiros navais e eu,   que agora partilham de certo modo o mesmo futuro. A esses, na tur-
          por cortesia de um grande amigo, fui em boa hora convidado. Na ver-  bulência do momento, será certamente difícil construir um conjunto
          dade, desde há muito que tenho um grande respeito pelos fuzileiros.   de valores, um mote, digo mesmo uma “lenda pessoal”, que os ligue
          Esse respeito ficou-me gravado na alma, quando com eles partilhei   a um projeto comum, algo novo na história do nosso país: uma saúde
          algumas missões, umas em situação de proximidade, outras em luga-  militar conjunta. Deste modo de estar, da defesa dos seus valores, do
          res exóticos e longínquos, como Timor Lorosae. Estas últimas foram   apego ao seu modo de vida, da sustentação da sua “lenda”, deram
          especialmente marcantes. Tal como ficou bem patente nas palavras,   (…e suspeito que darão sempre) boa conta os fuzileiros naquele dia
          naquela cerimónia, os fuzileiros demonstraram então que são mili-  feliz, que ficará nas suas vidas.
          tares inteiros, imbuídos de valores humanitários raros para o tempo   Ouso daqui afirmar que, do mesmo modo, enquanto não for possí-
          presente, constituindo um crédito vivo para os valores que o azul   vel afirmar um conjunto de valores, comuns a todos os médicos das
          naval representou e representa.                     Forças Armadas, que se associem à carreira médica, será muito difícil
           Depois,  pelo  decorrer  da  cerimónia,  pelo  fluir  dos  acontecimen-  assegurar um corpo médico estável e, porque não dizê-lo, feliz e moti-
          tos, pelo respeito demonstrado pelos ex-fuzileiros, representados no   vado. Os médicos, como qualquer ser humano, precisam de saber que
          desfile das forças em parada, e pelo profundo respeito demonstrado   estão a construir um caminho que reconhece o esforço de cada um,
          pelos ex-fuzileiros que partiram em missão, mas nunca regressaram,   que premeia a dedicação, que é equilibrado e justo. Só assim, também
          senti uma emoção profunda. Talvez todo este sentimento tenha sido   eles, poderão manter a ligação à vida militar e aceitar construir a sua
          potenciado – naquela luminosa manhã – pelo cheiro do mar, que a   vida, a sua própria “lenda pessoal”. Os fuzileiros construíram, muitas
          maré baixa impunha, pelos cumprimentos dos muitos fuzileiros que   vezes com sangue e lágrimas, a sua própria lenda. Esse conhecimento
          me  reconheceram,  ou  muito  simplesmente  pelo  sentimento  que   é o cimento comum que parece uni-los, com mais força que o mais
          me perpassa, desde que estou fora da Marinha – o de que (como na   forte cimento. Daí que “fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre” não
          poesia acima) estou na “orla da praia”, de certo modo distante e ao   seja um mote simples, ou um jargão repetitivo, é a força de uma vida.
          mesmo tempo muito perto.                             Posso afirmar que saí cheio de saudades, imbuído da melancolia
           Foi então, logo e ali, entre amigos, novos e velhos, entre fuzileiros,   que os marinheiros sentem quando deixam o mar. Este sentimento
          que fiz o meu autorretrato naval: pertenço ao grupo de médicos que   parecia anunciado pelos sons, gritantes, das gaivotas e outras aves de
          ficou. Aqueles que, de algum modo, tal como acontece com os fuzi-  grande porte, que demandavam a pista de lodo em Vale de Zebro,
                                                                                  naquele dia.
                                                                                    Aqui, na orla desta praia, não tenho que
                                                                                  me lamentar, a vida e a Marinha contribuí-
                                                                                  ram para que eu pudesse crescer assim,
                                                                                  com esta voz sentida, por vezes longín-
                                                                                  qua, por vezes próxima, que me trouxe a
                                                                                  este lugar de emoções onde sempre me
                                                                                  encontro. Uma ilha onde o azul predo-
                                                                                  mina, o azul do céu e o azul do mar, entre-
                                                                                  cortados por singelas figuras camufladas,
                                                                                  afirmativas do alto das suas boinas e das
                                                                                  suas almas, que me honraram, hoje como
                                                                                  ontem, com a sua amizade.
                                                                                    Um abraço sentido aos meus amigos
                                                                                  fuzileiros,  desse  lugar  de  emoções  e
                                                                                  poetas, que sem autorização, ou grande
                                                                                  mérito, amiúde visito.
                                                                                                              
                                                                                                             Doc


          30  NOVEMBRO 2017
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