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REVISTA DA ARMADA | 523


          ESTÓRIAS                                                                                         35


          “TRIDENTE”…




          A MASCOTE DO NAVIO



             “Tridente” era o nosso cão… a Mascote do NRP S. Miguel.  Foi por
         O mim levado para bordo com menos de 4 meses, logo no início
          do meu comando, mas muito rapidamente se adaptou ao navio e foi
          adoptado por toda a guarnição. Embora sem raça definida, asseme-
          lhava-se bastante aos setter, com pelo castanho avermelhado.
           Tendo crescido a bordo, e conhecendo as suas patas apenas o piso
          metálico do navio e o chão empedrado do cais, foi extremamente
          curioso apreciar a sua primeira experiência no areal da praia de Porto
          Santo – louco de alegria, fazendo covas, saltando, ladrando e correndo
          desenfreadamente naquela sua nova experiência.
           Funcionava como elo de ligação entre os elementos da guarnição,
          pois todos eram seus donos, embora manifestasse preferência por
          um ou outro marinheiro, dormindo à porta do seu camarote. A todos
          fazia companhia e de todos era objecto de brincadeira.
           Circulava por todo o navio, especialmente a Ponte, onde fazia com-
          panhia ao pessoal de quarto, ou o Refeitório das Praças, mais condi-
          cente com o seu posto de “grumete honorário”. Quanto à Câmara de
          Oficiais, era tabu, nunca passando da porta.
           Quando o navio atracava, saía de imediato a prancha indo ao cais
          aliviar as suas necessidades, regressando logo de seguida. Quando a                A mascote do NRP S. Miguel.
          navegar, ficava impaciente, só satisfazendo as suas necessidades num
          determinado local do convés superior menos frequentado, sob os tur-  Conceição nos Anais do Clube Militar Naval de OUT/DEZ1991.
          cos da embarcação do navio.                          De manhã, quando eu chegava a bordo, com o navio atracado na
           A navegar com algum balanço ele sofria bastante com o enjoo,   Doca da Marinha, nosso cais habitual, recebia à prancha os devidos
          mantendo-se por vezes deitado com as patas para o ar de encontro   cumprimentos do Imediato, Oficial de dia e restante pessoal de ser-
          à antepara para se manter estável. Situação bem curiosa e caricata.   viço com apito “a sentido”. Depois era a vez do “Tridente”, que respei-
          Ao aproximar-nos de terra, que ele detectava certamente pelo cheiro,   tosamente subia as escadas comigo acompanhando-me até à porta
          ficava de novo cheio de vida e já ladrava.          da Camarinha, ao mesmo tempo que me ia lambendo as mãos.
           Nadando no mar também se sentia muito à vontade, e era com   Apesar de ter tantos donos a bordo, o “Tridente” nunca se esqueceu
          alegria e sem hesitações que se atirava da escada do portaló para a   do seu primeiro dono – o Comandante –, que o levou para bordo e
          água, ao encontro dos seus marinheiros amigos. A todos se afeiçoou   o deixou dormir as duas primeiras noites na casa de banho do seu
          e a todos cumprimentava, sabendo distinguir bem quem pertencia ou   camarote.
          não ao seu navio. Fazendo companhia ao cabo de quarto junto à pran-  Muito mais tarde, mais de um ano depois de eu ter saído do navio,
          cha, dava alerta quando alguém se aproximava do navio, constituindo   quando o S. Miguel, atracado na Doca da Marinha, estava entre duas
          assim um bom auxiliar da guarda.                    missões ao Médio Oriente, envolvido na Guerra do Golfo, como única
           Mal atracávamos, e passada a prancha, o “Tridente” era sempre o   participação militar portuguesa, sob o comando do Cmdt. Rodrigues
          primeiro a pôr o pé em terra e logo de seguida tratava de se aliviar   da Conceição, aproximei-me da prancha do navio para perguntar ao
          fazendo as suas necessidades no cais. O pior aconteceu quando um   pessoal de serviço se estava algum oficial a bordo. A guarnição tinha
          dia, no Funchal, em vez de atracarmos ao cais, atracámos por fora ao   entretanto mudado. Ninguém me conhecia. Eu era apenas um vulgar
          petroleiro S. Gabriel.  Passada que foi a prancha, como de costume o   cidadão à paisana.
          “Tridente” de imediato a passou e com enorme à-vontade apressou-  Preparava-me, pois, para me afastar quando, inesperadamente e
          -se a fazer as suas necessidades… no convés do S. Gabriel, perante a   com grande surpresa minha, o “Tridente” desceu em correria a longa
          guarnição formada e ainda em faina. E dessa vez lá tivemos que ouvir   escada do portaló e, aos saltos, lambidelas e uivos, veio de forma tão
          resignadamente os protestos do Imediato desse navio, o saudoso   efusiva cumprimentar-me ao cais.
          amigo Cmdt. Elói Lopes Pereira, invectivando o nosso cão pelo seu   Não pude deixar de me sentir emocionado com aquela manifes-
          incorrecto comportamento. O “Tridente” é que teve dificuldade em   tação de amizade e saudade. Ninguém me reconheceu… mas o
          compreender a sua falta!                            “Tridente” não me esqueceu!
           Quando nos portos estrangeiros é que a situação se complicava,   Vim a saber mais tarde que, quando o navio foi abatido ao efectivo,
          pois havia necessidade de o esconder no porão, para que a sua pre-  houve vários pretendentes para levar o “Tridente” consigo.
          sença não fosse detectada e se corresse o risco de ter que o deixar                                 
          em terra de quarentena, o que seria inaceitável pelo pessoal da guar-                         Brito Subtil
          nição. E por isso se verificaram várias situações complicadas, nomea-                           CMG REF
          damente em Inglaterra, como nos descreve o Cmdt. Rodrigues da   N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico


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