Page 57 - Revista da Armada
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e ingénuo, pretendesse impor a  sua autoridade, sugerindo   Chamei o mestre do navio e logo IUquitectámos a operação
          um determinado caminho que lhe pareda mais adequado,   mais adequada para tirar aquela escultura de madeira que,
          o Franque. maliciosamente. cumpria em profundo silêndo   ao fim de tanto tempo, sem manutenção e sujeita a um sol
          as ordens  rcebidas.  mas.  passados alguns  momentos,  a   mtenso que alternava com chuvas torrenciais. devena estar
          " Tete ~ encalhava ... De facto. a navegação no Zambeze não   extremamente vulnerável. Ficou decidido que quando re-
          se compadeda com as regras e os conhedmentos que se es-  gressássemos da viagem,  o  que aconteceria dai a  pouco
          tudavam na Escola Naval e  que depois eram praticados a   mais de um mês, iríamos montar um andaime sobre uma
          bordo dos navios que andavam no mar alto. No rio Zambeze   lancha que colocariamos por debaixo da proa do naVio enca-
          era indispensável possuir UII\ sexto sentido. que só com a   lhado e, com todo o cuidado, com as precauções de quem
          experiênda de longos anos de muita perspicãda, se pode·   presta os primeiros socorros a um ferido grave. retirariamos
          ria adquirir.                                       aminhs Nereida. Já estava a vê-Ia na entrada da Capitania.
             Felizmente. nestas zonas de pouca água, o fundo era de   enquanto não fosse enriquecer o acervo de algum museu de
          areia e quase sem variação de cota. Encalhar não constltwa   temãtica marítima.
          problema que preocupasse o comandante e a guarnição da   Depois de deambular algum  tempo nas prOXimidades
          lancha. Em setenta e cinco centimetros de fundo, a solução   do velho veleiro abandonado, recomeçámos a nossa viagem
          era saltar para dentro da água, meter um dos ferros na pe'   para alcançar o fim da primeira etapa.
          quena embarcação que nos acompanhava e  largá-lo onde.   Atracámos ao fim da tarde, amarrando a  duas árvores,
          momentos antes, ainda se navegava. Depois. metendo den-  e pouco depois apareceram a bordo alguns familiares e ami-
          tro a amarra, a lancha. aliViada do peso da guarnição. roda-  gos da guarnição. porque a  Chacuma, local onde ficámos,
          va sobre si mesmo, e, lentamente. ia-se aproximando do lo·   estava ligada ao Chinde por uma picada que permitia fazer
          cal onde ficava completamente liberta do fundo. O pessoal   o trajecto por terra em boas condições.
          saltava para bordo,  a  roda a popa começava a  girar,  e  o   Os meus alojamentos eram no convés superior. Depois
          Franque, aganando-se ao leme, continuava a pilotar como   do jantar. enterrado numa cadeira de lona,  no parque da
          se nada tivesse acontecido, acrescentando mais uns pontos   ponte, descansava daquele meu primeiro dia de navegação
          à figura de gTandesenhorque era. A panirdai. as suas opi-  no Zambeze. A  noite estava amena, o  cêu estrelado. Ou-
          niões.  no  campo da sinuosa navegação do  rio  Zambeze,   viam-se os ruidos misteriosos e  excitantes da selva. Recor-
          eram respeitadas por  todos,  incluindo aqueles que ainda   dei a  descoberta da Nereida, o  seu encontro distante, e  a
          pudessem ter algumas duvidas sobre a  sua arte de nave-  palXão que naquela tarde tinha começado.  No  convés m-
          ."'.                                                ferio~, elementos da guarnição e  familiares conversavam,
             Mas, voltemos à largada do Chinde e à minha primeira   bebiam,  repetiam  hlstórias  mais  de mil  vezes contadas.
          viagem no Zambeze. A lancha desacostou da margem e se-  Sem  novidades,  certamente  falaram  da  descoberta  feita
          guiu. fazendo chape-chape na água, a iniciar a grande via-  pelo novo comandante e da intenção que tinha manifestado
          gem. Poucos quilometros a  montante, na mesma margem   de a  retirar  quando  regressasse do Chinde.  Às  tantas, o
          esquerda do rio, avistámos um naVio encalhado há longos   jeep partiu. o silêncio invadiu o mundo de bordo. e. à parte
          anos. Era um veleilo, talvez do fim do sêculo. A vegetação   o cabo de quano, a  guarnição foi  descansar para logo aos
          exuberante tinha-lhe entrado pelos rombos do casco e saia   primeiros alvores entrar em faina  e  recomeçar a  viagem.
          pelas aberturas do convés, como se fosse um grande anan-  Viagem de que retenho as melhores recordações. viagem
          jo floral, em que o vaso era o próprio navio. Assesto o binó-  cujo destino não foram as ddades do Tete e  Blantyre que
          culo para ver melhor e os meus olhos depararam com uma   visitámos, mas sim esse mesquecivel Zambeze que percorri
          figura de proa,  branca, debaixo do gurupés meio partido.   em toda a  extensão moçambicana até ao distante Zumbo,
          Aproximámo-nos. Era de uma mulher, representando uma   na fronteira com o actual Zimbabwe, enquanto foi possivel.
          nereida, nome do veleiro, cuja história nunca cheguei a dps-  e  num pequeno avião que a  Missão de Fomento e  Povoa-
          vendar.                                             mento do Zambeze teve a amabilidade de nos pôr à d.ispo-
             Encantado com a descoberta, não fui capaz de esconder   sição. Ao voltar de Tete percorremos o  rio Chile, de mar-
          o meu entusiasmo, Comecei logo a imagmar o processo de   gens  apertadas e  de curvas dtticeiS,  mostrando o  nosso
          a retirar do local onde se encontrava, aliás de dificil acesso.   Franque, mais uma vez, a sua pericia como piloto.


          Fntnque ,s"cutamba,  o  rei  dos pJ/oros  do   A  Nereida  vilra  da  lanchll-canhoneira  .Tete •.  Em  pnmezro  plllDO,  um.  dlls peças
          z.ambeze (desenho de M.E. Landeuo).   HotchJcjss do seu armamento (foro do autordo artigo).
                                                                                                      "
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