Page 118 - Revista da Armada
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Antologia do Mar
e dos Marinheiros
Jorge Luís Borges pejo ap.-trag. Crist61'ão Moreira
aquela tarde de Outubro de 1984, o auditório da Facul-
dade de Letras de Lisboa enchera-se para ouvir um ve-
lho escritor de 85 anos, viajante incorrigível, apaixona-
Ndo da paisagem do mundo, apesar de cego hã mais de
três décadas. Cegos tinham ficado o avô, e também o pai , que
contudo morrera sorrindo. Ele, «a última cor que perdi foi o
amarelo, o amarelo fulvo dos tigres».
O bisavô, esse, diz Borges que se chamava Francisco e que
era português, um marinheiro obscuro c emigrado do outro lado
do mar, da família dos Borges de Torre de Moncorvo, da vila
Iransmonlana que fez do escritor seu cidadão honorário, da vila
que ele nunca viu mas imagina, com essa sua capacidade de in-
ventar, de com palavras construir espelhos e grutas, e labirintos,
e pinhais, e dragôes, que povoam aqui e além sua literatura in- r FQ/o do.\·ffl·iço(/I' OonmwIIl(lçtio
temporal, bela e misteriosa, onde a humanidade se oculta sob dI) . Oiâriode N()/ícill.'·./
uma capa gélida. Mas, como diz Moran, é «um gelo que queima,
como o gelo das montanhas, quando com as mãos nuas o agarra- Borges, que obras posteriores irão confirmar: «EI Aleph ..
mos». (1949), «Otras Inquisiciones» (1960), «El Hacedor» (1964),
Jorge Luís Borges: um dos maiores nomes da literatura con- «Elogio de la Sombra» (1961) e «El lnformc de Brodic" ( 1970).
temporânea. Sem negar a sua condição de argentino, presença A linguagem do escritor, influenciada pela formação britâni-
inevitável na galeria dos grandes sul-americanos (Gabriel Gar- ca e francesa das suas leituras, tem um acento próprio. que se
da Márquez, Cortazar, Carpentier, Oneui, Fuentes), o escritor prende ao universo original que ela explora, e por onde se espa-
argentino acusa no espírito a presença da cullura europeia, mar- lham os temas favoritos de Borges, esses que invoca no prólogo
cada pelos anos vividos no velho continente. Mas fez-se univer- da sua «Nueva Antologia Personal» (1%7): .. a perplexidade me-
sal, a obra desse eterno candidato ao Nobel da literatura, honra tafísica, os mortos que perduram em mim, a gramática, a pátria,
que falta aoseu nome para completar a fila interminável dos prê- a paradoxal sorte dos poetas ....
mios, das comendas, das ordens e grã-cruzes de não sei quantos Tradutor apaixonado, para a língua castelhana, de Herman
países, doutor .. honoris causa» de não sei quantas universida- Melville, de Virgínia Woolf,de Kafka e Faukner, Borges foi ain-
des, a de Coimbra entre elas. Mas para esse bisneto de um mari- da autor, em colaboração com Bio)' Casares, e sob o pseudóni-
nheiro português. para o mais longínquo descendente de uma mo de H. Bustos Domecq , de histórias policiais, editadas com
concubina indígena do espanhol Martinez de Irala, fundador de o lítulode "Seis Problemas. para Don Isidro Parodi» (1942). No-
Assunção, a glória maior e duradoura ficará a ser a do encanta- meadodirectorda Biblioteca Nacional Argentina em 1955, após
mento da música e do mistério de sua palavra. a queda de Perón, altura em que passou a ser professor de litera-
Nasceu a 24 de Agosto de 1899, em Buenos Aires. Tinha tura inglesa e americana na Universidade de Buenos Aires, já
quinze anos quando viajou com a família para a Europa, e se ins- a cegueira começava a fazer-se tOlal: mas do seu espfrito irradia-
talou na Suíça, onde em Genebra fez os estudos de bacharelato. va luz bastante para suprir aquela que os seus olhos não tarda-
Em 1919 foi para Espanha, donde dois anos depois regressou à riam a perder para sempre.
sua cidade natal do Rio da Prata, cuja beleza descobriuecantou Da obra de Jorge Luis Borges, traduzimos duas peças que
em seus versos. Ali fundou , com outros escritores, a revista nos pareceram, ao mesmo tempo que adequadas ao tema destas
"Pro3», ai nda antes de surgir, em 1923, o primeiro livro, dos antologias, também representativas do ímpar escritor argenti-
poemas de sua capital, .. Fervor de Buenos Aires». Depois da no: o encanto da sua poesia está presente nos versos de "O
"História Universal de la Infamia» (1935) e de .. El Jardim de los Ma~ ; e o sortilégio da sua palavra, de mestre do fantástico, per-
Senderosque se Bifurcam .. (1942), surge em 1944 o famoso livro passa na história da viúva Ching, pirata dos mares que um dia
ue relatos. «Ficcioncs». cm que se revela a tmnscendênci,l de abandonou, e assim se fizeram seguros e felizes caminhos.
De «NOVA ANTOLOGIA PESSOAL»
(1967)
da t(!rra, eé um e muitos mares
OMAR e abismos e resplendor e acaso f.' vemo?
Quem o olha o vé por vez primeira,
Antesque o sono (ou o terror) tecesse sempre. Com o assombro que as coisas
mitologias e cosmogonias, elementares deixam, as formosas
antes que o tempo se cunhasse em dias, tardes, a lua, a chama dumafogueira.
o mar, e sempre o mar, já estava e era. Quem é o mar? Quem sou eu? Sabe-Io-ei
Quem éo mor? Quem é aquele violemo fnodia
eantiRo ser que roe os pilores ulterior que sucede à agonia.
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