Page 228 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS  DE  MARINHEIROS



            85-Uma cartall. a meias  I





                  navio largara da colónia, por
            O
                  bom  tempo,  rumo  a  Timor.
                  Pouco a pouco, o casario de
           Macau  fora-se  desfazendo  no hori-
           zonte  esfumaçado.  A  Guia,  no  seu
           perfil  verdejante, ainda persistiu  um
           pouco. Mas mesmo ela acabou  por
            mergulhar no mar calmo, sem deixar
           vestígios.  Parecia  que  nada  mais
            restava  dessa terra onde  se  vivera
           "mais de um ano. Mas um tenente, de
            quarto na ponte, observou que umas
            quantas gaivotas ainda acompanha-
            vam o navio, voando sobre a sua es-
            teira branca. Espirito romântico, lem-
            brou que talvez elas fossem a mate-
            rialização das almas de alguns amo-
            res que teimassem em não esquecer
            os marinheiros que partiram.
               Uma  noite passou e,  na  manhã
            seguinte,  ao nascer do Sol,  s6 uma
            das  gaivotas  persistia  ainda  em
            acompanhar o navio. A sua asa bran-
            ca palpitava mansamente no ar quie-
            to,  como um  lenço branco,  lá longe
            no cais, na derradeira hora da despe-
            dida ...       •
                         ••
                           •

               Na véspera da largada, a  socie-
            dade macaense havia oferecido um
            baile à oficialidade do navio. Foi uma
            festa  encantadora.  Alguns  dos  ro-
            mances  que  se  viveram  durante  a
            comissão,  tinham,  naquela  noite, o
            seu epílogo. De entre todos, por ori-
            ginai,  havia  o  de  dois  tenentes  de
            bordo enamorados da mesma moça.   Dançava alternadamente com um e   de, um dos tenente propôs -  e logo
            De  rara  beleza,  iluminavam-lhe  o   com outro, atenciosa e  interessada,   o outro aceitou -  que ambos lhe es-
            rosto dois olhos amendoados de um   mas sem manifestar qualquer senti-  crevessem de Timor uma carta em
            azul terno e transparente. Mas o que   mento mais profundo.         comum.  Ela  sorriu, enlevada,  acei-
            nela mais perturbava era o sorriso -  O  curioso  é  que  a  situação não   tando que tudo não acabasse naque-
            um sorriso de múltiplas expressões:   criara  qualquer  animosidade  entre   les derradeiros momentos.
            ora  doce e  meigo; ora  zombador e   os  dois  oficiais.  Perfeitos  camara-
                                                                                                •
            irónico; outras vezes, ainda indefini-  das, jamais tinham disputado entre si     •  •
            do, quase misterioso.             a preferência que sonhavam. Deixa-               •
               Longos  meses tinham  decorrido   vam  que  fosse  ela  a  resolver,  re-
            sem que ela se tivesse decidido por   signando-se, de antemão, com a de-  Chegados a Timor, e  num bloco
            nenhum. Ouvia-os a ambos, compla-  cisão  que  viesse.  Mas  essa  nunca   maciço  de  cem  folhas,  iniciaram  a
            cente, mas sem jamais trair inclina-  mais chegara  ...             carta,  escrevendo  alternadamente
            ção por este ou aquele. Decerto que   Já para o fim do baile, reuniram-  um e  outro. É decerto difícil resumir
            não era naquela última noite, véspe-  -se os três no bar, numa despedida.   as várias peripécias que imaginaram
            ra  da  partida  definitiva  de  ambos,   Enquanto  o  espumante  crepitava   ao longo da missiva.  Guardadas as
            que ela assumiria uma preferência.   nas taças, propiciador do último brin-  distâncias,  como  Ramalho  e  Eça,

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