Page 276 - Revista da Armada
P. 276

HISTÓRIAS DE MARINHEIROS/97-




                  Uma digestão difícil




                 pequena canhoneira - era a
           A             entrou  no  Funchal,                                                                         •
                 «Diu»  -
                vinda  dos  Açores, atracando
           ao  cais  da  Pontinha. Ali,  no  canto
           mais abrigado, aconchegou-se bem,
           no descanso merecido dos mares ln-
           vernosos  que  a  tinham  maltratado
           antes.
              Os  guardas-marinhas  de  bordo
           - eram três -, sempre que podiam
           libertar-se, metiam-se pela terra den-
           tro.  na procura de diversões que os
           compensassem  da clausura  liquida
           que vinham de sofrer.
              Num sábado, o imediato, que era
           segundo-tenente  e bom  camarada,
           prontificou-se  para  ficar  a  bordo,
           substituindo  um  dos  guardas-mari-
           nhas que  estava  de divisão. E. as-
           sim, foram todos três, em alegre ca-
           maradagem, para o Hotel Savoy.
              Tocava aqui, na  altura,  uma or-
           questra  famosa.  Não  faltavam  jo-
           vens turistas inglesas. Oe nada mais
           precisavam  os  guardas-marinhas
           para uma noite bem passada ...
              Regressaram  a  bordo  bastante
           tarde.  E logo de manhã cedo, quan-
           do um deles, no beliche, decerto ain-                                   -d.I, .... ' q!
           da  sonhava  com  alguma  loira,  foi
           acordado pelo criado do senhor co-  e medidas. Claro que, sem o menor   cordar a efeméride, numa palestra à
           mandante. Este o chamava, com ur-  rictus  de  contrariedade,  cumpria   guamição, ao meio-dia, antes das li-
           gência. Ainda ensonado, não atinava  prontamente  todas  as  determina-  cenças irem  para terra. Imperturbá-
           com  a razão  de  tal  convocação  in-  ções superiores.            vel,  sem  um  comentário, O guarda-
           tempestiva. Era domingo, não entra-  Já no  Intimo se  comparava aos   -marinha perguntou, apenas, se o co-
           va de serviço, tinha cumprido exem-  companheiros. Decerto que, no con-  mandante  «determinava  mais  algu-
           plarmente os seus deveres na sema-  ceito do comandante, lhes era infe-  ma  coisa ...  Na negativa -  é o que   •
           na  transacta.  É certo que o coman-  rior.  E aquela insistência, que o viti-  faltava se ainda quisesse mais - re-
           dante o perseguia. Não havia frete, a  mav;f. obrigando-o a esforços cons-  tirou-se.
           bordo, que não calsse sobre ele. Os  tantes, para além da normalidade do   Ignorava  totalmente  o  assunto.
           outros dois camaradas eram poupa-  serviço, talvez tivesse a piedosa in-  Jamais ouvira falar  no tal  combate.
           dos, em seu entender.             tenção de melhorar o seu desemba-  Pelo  nome, pressentia, vagamente,
              Não havia escala para os autos.  raço.                           que  o  local  seria  em  África.  Mas
           Quando  estes surgiam, sempre ele    O que estaria para acontecer, na-  onde?  Em  Angola?  Em  Moçambi-
           era  nomeado  para  levantá-los.  Os   quela  manhã  de  domingo, dia  nor-  que?
           esquemas  eléctricos  do  navio  ha-  malmente descansado, sem tarefas   Procurou os outros dois guardas-
           viam-se extraviado. Pois fora ele -  adicionais? Barbeado à  pressa, far-  -marinhas, mas estes eram tão igno-
           mais o cabo torpedeiro - que os re-  da enfiada num ápice, bateu à porta   rantes  como ele. A Escola Naval só
           constitulra.  Certa vez, julgou-se ne-  do  camarote  do  comandante.  Este,   lhes falara em combates navais. De-
           cessário fazer o balanço do paiol de  muito sério, quase secamente, des-  certo que os de terra eram especiali-
           géneros.  Por  determinação  do  co-  vendou o mistério: passava, naquele   dade  dos  camaradas  do  Exército.
           mandante, lá mergulhou ele nas pro-  mesmo dia, o aniversário do comba-  Mas tinha que se desenrascar.
           fundezas do navio, a conferir pesos  te de Marracuene. Era necessário re-  Meditou um pouco e concluiu que

           22
   271   272   273   274   275   276   277   278   279   280   281