Page 166 - Revista da Armada
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bordo  dos  navios  hidrográficos   indispensável  funcionário  estava   Quando o  navio  flutuou  já era
           nunca foi  fácil  nem leve e  que os   com uma terrível biliosa no dia da   noite fechada. A minha preocupa-
           tostões que, de facto, se ganhavam  prevista subida do rio. Ele bem quiz   ção era ter o  projector aceso para
           a  mais saíam do pelo a todo o pes-  embarcar, mas cheio de febre tre-  iluminar os enfiamentos do magní-
           soal  das  guarnições,  fosse  qual  mia  como  varas  verdes  e  seria  a   fico  levantamento  do  TEN  Diniz.
           fosse a  sua patente!             mais  imperdoável crueldade e  im-    Com luz  tão  intensa, milhares
                                             prudência embarcá-lo naquele esta-  de aves foram acordadas e  esvoa-
                                             do. No reconhecimento do rio tinha   çavam em torno do  navio com os
                                             sido acompanhado por outro pilo-   seus  pios e gritos lancinantes e cen-
                                             to  de cujos  serviços  nos valemos.   tenas  de  jacarés  saltavam  para  a
                                             Com ele chegámos a Binta a  são e   água. A isto se juntava o guinchar
                                             salvo.                             dos macacos nas frondosas árvores
                                                 Mas ali começaram as dificulda-  das margens e o galopar de invisí-  •
                                             des e  os trabalhos. Era engraçado   veis  animais  selvagens  em  terra.
                                             assistir  ao  labor  dos  então  TENs   Era um espetáculo feérico!
                                             Joaquim  Trindade,  Alves  Diniz  e   Breve chegámos a  Farim.
                                             Costa Santos a  tentarem desenhar     Um cordão de luzes de cente-
                                             panorâmicas  dos  enfiamentos.  O   nas  de archotes empunhados  por
               VALM Carlos da Fontoura Gar-  piloto dizia que «assim como vai é   outros tantos mandingas, vestidos
           cez de Lencastre, na altura 2TEN,   o CaminhO>l e cada um deles desco-  com  as  suas  impecáveis  jilabas
           chefe  do serviço de electricidade.   bria um coqueiro que enfiado com   brancas,  marcava  o  caminho,  do
               Jovem  então,  embarquei  no  uma bananeira defenia o enfiamen-  local de desembarque até á Admi-
           ((Pedro Nunes!> para a Comissão de   to.  E  começavam  a  panorâmica.   nistração. Por entre eles seguiu o
           representar a Marinha nas cerimó-  Mas mal levantavam os olhos já o   Governador,  CTEN  Sá  Linhares
                    0
           nias do 5. Centenário da Descober-  enfiamento era outro. Interrogado   comandante do navio, e os oficiais.
           ta da Guiné.                      o piloto, inalterável afirmava «assim   Parecia um cortejo de outras erasl
               Inúmeros  episódios  extraordi-  como vai é  o  caminho)).       E ao longo de toda a noite se ouviu,
           nariamente curiosos haveria a rela-   A cena repetiu-se várias vezes.   por  milhas  e  milhas  em  redor,  o
           tar, a  maioria dos quais mostraria   Aproximavamo-nos  do  tal  ómega  soar dos tambores e  batuques em
           o  belo espírito de equipa que rei-  que marcava um baixo de areia no   nossa honra.
           nava entre a  guarnição,  nomeada-  meio ... Eu era apenas o electricista-  Que maravilhai  Só tenho pena
           mente  entre  os  Oficiais.  Para  tal   -torpedeiro, mas recordei ao coman-  de não ter dotes de narrador para
           contribuimos todos. cada um com   dante que.  há cem anos, havia ali   transmitir a  emoção  que  senti,  e
           a  sua forte  personalidade,  mas  o   um baixo. E o piloto repetia «assim   ainda  hoje  sinto,  ao  recordar  tão
           cimento  era  o  oficial  imediato  o   como  vai  é  o  caminho)).  A  carta  extraordinária viagem ...
           então 1 TEN Malheiro do Vale.     aconselhava  que  nos  encostasse-
               Recordarei que entre as celebra-  mos a  uma margem,  mas o  piloto
           ções estava incluída uma subida do   levava o navio bem a meio, repetin-
           rio Cacheu até Farim.  Este rio era   do ... «assim como vai é o caminho!>.
           frequentado assiduamente por na-      Sente-se o navio lavrar o fundo
           vios de carga da Sociedade Geral de   e  o  piloto  repetia a  sua monocór-
           Transportes que iam a Binta embar-  dica frase acrescentando ((dá  mais
           car madeiras exóticas e  mancarra.   força no vante que passa)). Não pas-
           Mas dali a Farim, mediavam umas   sou.  O  fundo  do  navio  era  mais
           escassas milhas de um rio cheio de   fundo que o fundo do mar, no caso
           curvas e contracurvas, para dobrar  presente  do  rio,  e  ficámos  enca-
           as quais quase se tomava pecessá-  lhados.                                                                 ,
           rio dotar o navio de dobradiças I As   Anos  mais  tarde  Teixeira  da
           'dificuldades eram tais que há cer-  Mota diria que o regimen de marés
           ca de 100 anos nenhum navio com   na Guiné poria louco o  melhor hi-
           o  porte do ((Pedro  Nunes)) deman-  drógrafo. lamas com a  enchente e
           dava Farim. A única carta existente   nada nos safou. A maré virou rapi-
           do  rio  era do  Almirantado  Inglês.   damente  e  ficámos  praticamente
           Tinha  precisamente  100  anos  e   em seco.
           assinalava,  numa das  tais curvas,   Vai a  embarcação para a  água
           do  feitio  de  um  apertado ómega,   com o  TEN Dinis, que era o  nave-
           um baixo de areia mesmo a meio do   gador,  a  fazer  o  reconhecimento
           rio.  Talvez  por  isso  aquele  troço   do  rio  até  Farim,  informando  as
           tinha sido explorado previamento   autoridades  locais  que  o  «Pedro
           pelo capitão dos portos, CTEN Sena   Nunesll, com o governador a bordo,                   M.  do  Vale,
                                                                                                           CALM
           Dentinho acompanhado pelo piloto-  então CTEN Sarmento Rodrigues,
           -mar  de  nome  Fonseca,  homem   chegaria  com  cerca  de  12  horas
                                                                                ***********
           cheio  de  experiência.  Mas  esse  de atraso.
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