Page 351 - Revista da Armada
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CRÓNICA DA RESERVA NAVAL



                              Rumo ao passado
                               Rumo ao passado




              crónica da Reserva Naval é a  viradas para a nuca, enquanto o dono do  mar e que um navio só seria nosso quando
              Crónica do “meu tempo”. Sete anos  pescoço blasfemava contra os “capitães”  pudéssemos içar nele a Bandeira Nacional
         Ade vivência activa na Marinha de  que tinham inventado as fardas só para  durante todo o ano, quando afinal verifico
         Guerra, na década de sessenta e em idade  nos tramarem.               que um marinheiro não tem de andar no
         compreendida entre os vinte e dois e os  Também não entendia porque é que a  mar, que para isso também existe a
         vinte e nove anos, deixam marca perma-  alvorada tinha de ser às 7 horas da manhã,  Guarda Fiscal e a Guarda Nacional Repu-
         nente na vida de qualquer um.      exactamente quando o sono melhor sabe.  blicana, e que os navios podem ser nossos
           Não fujo à sina, nem razões                                         por períodos de três meses, alternados
         tenho para lamentar esse tempo.                                       com outro qualquer país, desde que os
           Gratas recordações dessa                                            letreiros estejam em língua adoptada pela
         época, com passagem longa por                                         Comunidade Europeia.
         Fragatas, Patrulhas, Draga-Minas,
         Lanchas de Fiscalização e Pe-                                           É, por essas e por outras, que me gabo
         troleiros, nos cenários da costa eu-                                  do “meu tempo”.
         ropeia, no mar das Caraíbas ou
         nessa terra fabulosa de Angola,                                         Aprendi, por exemplo, que uma criança
         foi prenda para quem inicia vida                                      angolana era um rapazinho com idade
         de adulto de que poucos se po-                                        menor, que tinha orgulho em se deixar
         dem gabar.                                                            fotografar comigo, ou que dormia sem
           Eu, por mim, gabo-me.                                               medo, quando afinal, criança angolana é
                                                                               apenas um qualquer miúdo que só tem
           Quando, em 1961 entrei na                                           uma perna e  consegue, com apenas dez
         Escola Naval, para a frequência                                       anos de idade, passados que são vinte e
         do 4.º Curso Especial de Oficiais                                     cinco desde que eu deixei de o escravizar,
         da Reserva Naval, um Cabo era                                         continuar a falar português mesmo tendo
         um velho e um senhor Almirante                                        como professores cubanos e americanos.
         uma figura veneranda, a que um
         Cadete só tinha acesso quando                                           Há realmente mistérios indecifráveis.
         calhava de ser premiado ou cas-
         tigado.                                                                 E ponho-me a pensar como é útil a
           Entristece-me a realidade.                                                            Internet, o  e-mail, as
           Hoje, um Cabo é um miúdo, e                                                           dióxinas, os campos
         um senhor Almirante é um Fi-                                                            de refugiados, as ci-
         lho da Escola, um rapaz do                                                              meiras mundiais, as
         “meu tempo” que foi promovi-                                                            conferências de im-
         do a guarda-marinha já eu era                                                           prensa e as reuniões
         2.º tenente.                                                                            do G 8.
           São os sinais da idade.    Criança angolana vivia com orgulho
                                                                                                   Uma coisa me
           Nesse tempo, fazia-me confusão como é  Se um militar é o es-                          consola: com a ve-
         que havia largura, nos ombros de um  pelho da Nação, bem                                locidade das coisas,
         capitão-de-mar-e-guerra, para caberem  podia o clarim tocar                             com a inflação e o
         tantos galões.                     um pouco mais tarde.                                 stress, com a ténue
           Imaginava-os, por debaixo da camisa,                                                  separação entre a
         usando um cabide e, quando  vestiam a  E nunca percebi                                  vergonha e a des-
         farda azul de Inverno, servindo-se de uns  porque deveria saber                         vergonha, nada,
         braços mais compridos, postiços, para que  distinguir, pela si-                         hoje em dia, dura
         o óculo não assentasse nos cotovelos.  lhueta, um Subma-                                muito tempo.
           Não entendia como era possível mudar,  rino, de uma Fragata.
         na camisa branca, o colarinho de goma,                                                    Nem mesmo a
         colocá-lo na posição em poucos segundos  Hoje, gente bem                                miséria!
         e conseguir que o mesmo se mantivesse  mais responsável (?)  ... e dormia sem medo.
         impecável ao longo de todo o dia.  do que eu, não dis-                                    Que a memória
                                            tingue um Porta-aviões de um Cacilheiro.  me não falhe para as crónicas que procu-
           Na minha camarata da Escola, o Zé                                   rarei trazer à Revista da Armada.
         Figueira, o cadete que mais histórias legou  Insisto em  dizer que  me entristece a
         ao nosso curso, adoptou o sistema de  realidade.
         nunca tirar a camisa, após experiências  Andaram a convencer-me que um major        José Augusto Pires de Lima
         frustrantes em que o colarinho ficava sis-  não era o mesmo que um bombeiro, que               Ex.-2TEN RN
         tematicamente com uma das pontas   um marinheiro fora feito para andar no                  (Curso Nuno Tristão)

         24 NOVEMBRO 99 • REVISTA DA ARMADA
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