Page 350 - Revista da Armada
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uma importância muito grande no espaço de  Santiago de Compostela nas poucas páginas
         Afonso VI e Santiago de Compostela, como  deste artigo, mas não seria possível deixar
         símbolo do cristianismo peninsular, era uma  passar esta obra do século XII, atribuída a
         das razões dessa importância.      Mestre Mateus. O Pórtico da Glória explica,
           Quando os nobres portucalenses, alçaram a  por imagens, toda a essência da religião cristã,
         figura de Afonso Henriques e partiram para a  contida no Antigo Testamento e nos
         batalha de S. Mamede, em 1128, sobretudo  Evangelhos: a vida e a morte, com a salvação
         reagiam contra uma crescente influência gale-  para uns e o castigo eterno para outros. Numa
         ga no seu espaço. E nesta reacção dos cava-  época em que predominava ainda o români-
         leiros de Entre Douro e Minho está  patente  co, esta obra magnífica apresenta já a
         um outro sentimento, de natureza religiosa,  emergência do gótico que despontaria a partir
         ligado à rivalidade entre Braga e Compostela.  de então.
         Lendariamente, Braga foi a primeira diocese  O lugar da catedral de Compostela tem tú-
         da Península Ibérica, fundada pelo próprio  mulos e vestígios que remontam à idade do
         Santiago. E a imagem de Braga, como cidade  bronze. Os túmulos que são atribuídos a San-
         sagrada, congregadora do sentir cristão, nunca  tiago e aos seus discípulos, deixam céptica a
         desaparecera, mesmo durante a ocupação  própria igreja, que reconhece serem do sécu-
         muçulmana. Agora, com a política de Diego  lo I ou II, como o mostram os estudos arqueo-
         Gelmires em Compostela e com os ataques  lógicos, mas não garante que contenham os
         directos que fez contra Braga (cujo arcebispo  restos do apóstolo. O que é que lá está, de
         era S. Geraldo), levantava-se uma outra razão  facto? Como já vimos, em tempos estiveram
         motivadora da independência do espaço por-  ali interesses de natureza política, tentativas
         tucalense. E essa razão está, sem dúvida, pre-  de afirmação da Península Ibérica no mundo  Porta Santa.
         sente em S. Mamede.                cristão e o apelo à vinda de cavaleiros que
           A Escola Naval foi visitar Santiago de Com-  combatessem os mouros. Estiveram muitas  caminhada e no alheamento da vida comum.
         postela no fim de semana de 17 e 18 de Abril  mais coisas, certamente, porque a explicação  Não é sequer um fenómeno cristão, embora
         último. Alunos, professores e funcionários,  dos factos históricos raramente se esgota em  fosse como tal que marcou a cultura europeia.
         numa manhã cinzenta e chuvosa entraram na  duas ou três explicações simples. Mas, sobre-  Todos os povos antigos tiveram quem se
         velha cidade, não como o fizeram milhões de  tudo, esteve ali uma razão de peregrinação e  entregasse às longas caminhadas, na busca de
         peregrinos ao longo dos séculos, mas como o  de consolo moral para milhões e milhões de  algo misterioso que não é fácil de definir, e
         fazem os viajantes do século XX. Não se  pessoas. Foi o ponto de apoio de uma forma  que não está em Santiago de Compostela nem
         deslocaram a pé, apoiados no seu bordão.  de fé, e a fé (não necessariamente cristã) é  em parte alguma da terra. Está dentro do
         Usaram confortáveis autocarros e viajaram  algo que a própria razão elege como indis-  próprio peregrino caminhante e só pode ser
         pela auto-estrada, como tem de fazer quem  pensável à vida.           descoberto na solidão da caminhada, longe
         vive os tempos modernos e apenas tem dois  E o ex libris de Compostela é sem dúvida a  da azáfama quotidiana, a olhar para as ár-
         dias para visitar um lugar que fica a mais de  imagem clássica do peregrino: o penitente  vores, a sentir a envolvência terrível do deser-
         seiscentos quilómetros do Alfeite. Por isso,  curvado, coberto por uma capa de burel,  to ou a contemplar o imenso espaço maríti-
         quando as torres da catedral de Santiago  apoiado no bordão, um chapéu de abas lar-  mo. O marinheiro é também um peregrino.
         emergem da bruma e, com todo o seu esplen-  gas, com a parte da frente levantada, uma ca-  Aliás, o marinheiro é, sobretudo, um peregri-
         dor, rompem o ar cinzento de uma manhã  baça para a água e uma vieira*. As peregri-  no. O que pode ter feito com que milhões de
         chuvosa, a nossa emoção não pode compa-  nações envolvem uma penitência que exige  pessoas caminhassem para Compostela?… A
         rar-se à de quem percorreu milhares de  moderação, despojamento e sacrifício. É,  fé de que iriam estar em contacto com as
         quilómetros a pé, em busca daquela imagem  sobretudo, um estado psicológico de quem  ossadas de um companheiro de Cristo? A
         redentora. Contudo – independentemente do  procura consolo e paz, na paciência da longa  emoção da proximidade do objecto que teste-
         sentir religioso de cada um – ninguém é in-                           munhou o sagrado?… Sem dúvida nenhuma!
         sensível ao peso histórico de um lugar que                            Mas não será isso apenas uma razão comum
         merece a atenção de toda a cristandade,                               para justificar a necessidade de largar o
         desde o século IX. Compostela é um livro                              mundo social absorvente e procurar-se a si
         aberto onde foram escritos testemunhos de                             próprio, fora dessas influências estranhas?… E
         todo o milénio que se finda. O núcleo central                         não é a mesma coisa que se procura nos
         da catedral, construído no século IX, foi des-                        espaços marítimos infindos?… Estou em crer
         truído pela invasão de Almançor e dele ape-                           que sim. Talvez que os marinheiros modernos
         nas temos um testemunho arqueológico. Mas                             não o sintam tão intensamente como sente o
         a catedral do século XI é, basicamente, a mes-                        velejador oceânico ou como sentiram os ho-
         ma que vemos hoje. Apenas lhe foram au-                               mens do mar de tempos antigos, quando os
         mentados ornamentos e acrescentos que o                               navios se arrastavam à velocidade que a na-
         gosto de cada época foi determinando. Por                             tureza permitia. Mas a atracção pelo mar con-
         ela passaram as mãos dos arquitectos góticos,                         tinua a ser uma obra do peregrino que há den-
         renascentistas e, sobretudo, barrocos. Toda a                         tro de cada um de nós.
         parte virada para a praça do Obradoiro (que
         corresponde à entrada principal da igreja) é                                              J. Semedo de Matos
         barroca e foi completada no século XVIII, pelo                                                   CTEN FZ
         arquitecto Fernando de Casas y Novoa. Ela
         esconde a antiga entrada românica, onde                               Nota:
         havia uma antecâmara destinada  penitentes e                          * Não é muito clara a forma como a vieira (concha)
         catecúmenos (era comum nas igrejas daquele                            entrou na simbologia de Compostela.
         tempo e podemos encontrar o mesmo em
         Braga), separada da igreja pelo magnífico Pór-                            A Escola Naval está disponível em:
                                                                                        www.escolanaval.pt
         tico da Glória. Não nos é possível descrever  Pórtico da Glória.
                                                                                     REVISTA DA ARMADA • NOVEMBRO 99  23
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