Page 295 - Revista da Armada
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e a segurança, num ambiente de respeito paz. As decisões que emanam dessas entendidas acabam por não ter a mínima
pelos valores humanos. Com esse mes- estruturas comuns são sempre tomadas possibilidade, ou vontade, de concretiza-
mo ideal, a Europa tinha criado as orga- por uma cúpula civil, constituída pelos ção.
nizações que, com sucesso, defenderam "mesmos" políticos que tratam os "mes- Temos que substituir os debates abs-
aqueles valores durante períodos difíceis mos" problemas de segurança e de defe- tractos pelo tratamento dos problemas,
de quase guerra. Hoje decidiu mantê- sa no interior dos países membros. Ape- mas, continua a ser muito difícil passar
-las, e a Europa do alargamento clara- sar de tudo isto, é frustante ver como, a do estudo à decisão e da decisão à rea-
mente deseja integrar-se no sistema que, nível dos interesses comuns, tal como lização.
com credibilidade reconhecida, poderá logo a seguir a nível nacional, tantos
garantir-lhes o mesmo sucesso de segu- estudos elaborados para satisfazer direc- António Emílio Ferraz Sacchetti
rança para o desenvolvimento e para a tivas políticas justificadas e plenamente Vice-Almirante
APONTAMENTO
KURSK: causas político-militares
KURSK: causas político-militares
de uma tragédia
de uma tragédia
ssistimos, durante pouco mais de uma preferencialmente pelo pessoal; na ma- O investimento em navios novos encon-
Asemana, às desesperadas tentativas rus- nutenção oscilam entre os 8% e os 10% do tra-se drasticamente reduzido na marinha
sas, norueguesas e britânicas para resgatar montante que seria necessário. Apesar de da Rússia; em alternativa foi tomada a
a guarnição do submarino nuclear "Kursk". os submarinos nucleares constituírem a opção de prolongar a vida útil dos exis-
Os órgãos de comunicação social ex- prioridade máxima da marinha russa, tentes. Não são conhecidos critérios objec-
plicaram exaustivamente à opinião pública julga-se que das 18 unidades em serviço, tivos para esta decisão, que não estejam
os aspectos técnicos das possíveis causas só 8 se encontram operacionais e, destas, associados à intenção de manter um dis-
do acidente e das actividades desenvolvi- apenas há capacidade para manter 2 a 3 positivo naval compatível com as ambições
das, quer para aceder ao interior do sub- com níveis de operacionalidade com- de grande potência mundial e não de um
marino, quer para controlar eventuais patíveis com as exigências da guerra mo- país em profunda crise económica. Alguns
emissões radioactivas. Por isso, consumada derna. A esquadra de superfície apresenta destes navios apodrecem em bases navais;
a tragédia, conhecidas as suas consequên- níveis de treino muito baixos; os pilotos outros operam com diferentes níveis de
cias a nível humano e material, e debatida das aeronaves da marinha russa voam, em prontidão. Evidentemente que as missões
a forma desastrosa como os governantes e média, 40 horas por ano! são cumpridas com riscos agravados para o
os almirantes da Rússia geriram esta crise, pessoal embarcado e sem a eficácia
importa agora identificar as causas políti- A 30 de Julho, o almirante Chefe do necessária ao seu emprego em conflitos
co-militares que estão na génese da tragé- Estado-Maior da marinha russa, Vladimir reais ou em tarefas de grande exigência téc-
dia. Esta reflexão afigura-se essencial para Kuroyedov, num discurso que proferiu, nico-naval, o que representa uma degra-
retirar as conclusões que permitam evitar centrou as suas preocupações relativas ao dação da sua função militar, que não pro-
situações semelhantes, sejam na marinha orçamento, no facto de apenas viabilizar porciona qualquer contrapartida de segu-
russa, na marinha portuguesa, ou em qual- a existência de 60 navios no ano 2016. rança e descredibiliza a marinha russa pe-
quer outra potência, independentemente Nada disse quanto ao cancelamento de rante a sociedade do seu país, por não
da sua dimensão. missões por inexistência de meios servir para o fim a que foi criada.
humanos e materiais com os requisitos
A marinha russa tem sido encarada necessários. Perdeu uma oportunidade No período alargado de paz em que
como um símbolo do poder nacional e um suprema para reiterar ao presidente Putin vivemos os governantes russos, face à
pilar da capacidade de defesa e afirmação e à nação russa que as forças navais ultra- gravidade e complexidade dos problemas
de um país com ambições globais, tal passaram o limite das suas possibilidades políticos, económicos, sociais e militares
como no tempo da URSS. O sistema de e que têm grandes dificuldades no do seu país, adoptaram uma lógica comum
força naval foi concebido e edificado para cumprimento das missões atribuídas. para a sua resolução: a racionalidade
o controlo dos oceanos e para a projecção Inegavelmente devia ter afirmado que era económica. Esqueceram-se que, quando os
de força à escala mundial, tarefas muito tempo de aproveitar a pausa estratégica assuntos militares são colocados nos mes-
para além das funções vitais de defesa mili- proporcionada pelo fim da guerra fria mos termos dos negócios e submetidos a
tar de um país com dificuldades económi- para preparar a marinha russa para novos valores empresariais, as restrições orça-
cas. Com efeito, é sabido que a marinha desafios à segurança do país. Cometeu mentais adquirem primazia sobre a segu-
russa se encontra em profunda crise há um erro clássico: adoptou a filosofia do rança, pelo que as marinhas entram em
cerca de 10 anos, em resultado da redução "podemos fazer", sem ponderar os riscos crise moral e operacional, ficando conde-
global do orçamento de defesa (45 mi- de tal decisão. Desta forma, ao difundir nadas ao fracasso por incapacidade
lhares de milhões de USD) e, dentro deste, uma ideia deturpada da prontidão da humana e material.
da verba a que tem direito (cerca de 11%). marinha russa, contribuiu para o aumento
Em consequência dos cortes orçamentais, da probabilidade de ocorrência de aci- António Silva Ribeiro
os recursos financeiros são consumidos dentes. CFR
REVISTA DA ARMADA • SETEMBRO/OUTUBRO 2000 5