Page 330 - Revista da Armada
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PONTO AO MEIO-DIA



             Livro Branco sobre Defesa Nacional


                        Os militares e a modernização da defesa



              m artigo anterior falou-se no alar-  sem objectivos concretos, com os militares à  finalidade. O problema fundamental não
              gamento do âmbito da estratégia e  espera de algo que sabem não acontecerá.  está nas estruturas, mas nos hábitos, nas
          Ena falta de sensibilidade política  Caso outras motivações, de maior credibili-  mentalidades, nas atitudes e na doutrina.
          actual para os problemas de defesa.  dade, não venham substituir as antigas, os mi-  Já se referiu em artigos anteriores que a
            Também no seio das Forças Armadas,  litares viverão uma crise existencial, com possi-  Marinha, ao contrário do que acontece
          porque é muito acentuado e rápido o pro-  bilidades de transformarem-se em burocratas  com o Exército, não define "novas mis-
          cesso de evolução política, económica,  fardados encarregados de operar um mecanis-  sões". Não tem mesmo novas missões,
          social e tecnológica, há percepções diferentes  mo inútil, uma máquina de caçar fantasmas.  porque as que vinha cumprindo e conti-
          em relação à profundidade e ao ritmo que  ... Dino Buzzati, em "O Deserto dos Tárta-  nua a cumprir agora respondem aos objec-
          deve ter o processo de modernização.  ros" (publicado em Portugal pela Europa-  tivos políticos actuais, são adequadas ao
            Neste momento pretende-se apenas re-  -América, colecção Os Livros das Três  ambiente em que se desenvolvem, dignifi-
          ferir algumas dificuldades manifestadas  Abelhas, Junho de 1963), retrata a vida de  cam a Marinha e são úteis tanto para Por-
          no sentir e na atitude dos militares perante  uma guarnição militar, isolada às margens de  tugal como para as Alianças em que esta-
          a modernização da defesa e das Forças Ar-  um deserto, sempre à espera de um ataque dos  mos inseridos, como ainda para as comu-
          madas. Escolheram-se os seguintes pontos:  tártaros que sabe que nunca virá. Neste am-  nidades com as quais cooperamos.
            1. Encontrar a "utilidade" ou a justifica-  biente, a crise existencial é inevitável.  Se existir qualquer forma de ansiedade,
          ção das Forças Armadas nos dias de hoje.  Por último, em 1993, Taichi Sakaiaya,  ela só pode ser motivada por questões de
            2. Abandonar parâmetros antigos, para  economista e antigo funcionário do Minis-  ordem material, ou relacionadas com a de-
          uma abertura plena à modernização.  tério do Comércio e Indústria Internacio-  bilidade de capacidades e escassez de meios
            3. Admitir que a evolução do pensa-  nal do Japão, referindo-se às aspirações  da Instituição, ou com a insatisfação das
          mento é mais importante do que a modifi-  materiais (ou às frustações) do povo  aspirações individuais dos seus membros.
          cação das estruturas.                                                 São precisas, portanto, definições de
                                            japonês, escreveu:
            Um dos problemas fundamentais no  Assim como Adão se cansou da vida do Éden  objectivos e doutrina. Os princípios dou-
          modo como as Forças Armadas encaram a  e provou o fruto proibido, os japoneses estão cada  trinários aparecem mais frequentemente
          sua própria reestruturação, reside no facto  vez mais incomodados pelo facto de os seus dias  nos artigos de opinião, onde não podem ter
          de não assumirem, na prática, a mudança  decorrerem sempre calmamente, sem incidentes.  legitimidade reconhecida, do que em nor-
          que teoricamente elas próprias definiram,  Infelizmente para os japoneses, este Éden não  mas inseridas na matriz adoptada pela
          e de não conseguirem encontrar a sua fi-  pode ser mudado simplesmente com o comer do  autoridade responsável pela formalização
          nalidade naquele mundo novo que as  fruto proibido e, de qualquer forma, há muito  dessa doutrina. As determinações simples,
          suas análises retratam.           poucos Adãos japoneses suficientemente ousados  claras e precisas são indispensáveis mas são
            Nenhuma instituição resiste se não sen-  e curiosos para o fazer. Os padres e os burocratas  pouco doutrinadoras, pelo menos naquele
          tir a sua utilidade, assim como dificilmen-  aprisionaram todas as maliciosas serpentes tenta-  aspecto em que, esclarecendo o propósito,
          te uma sociedade poderá ser feliz se não  doras. Embora toda a gente sinta uma crescente  conquistam a adesão inequívoca dos subor-
          reconhecer que persegue um objectivo vá-  irritação com o presente desprovido de alegria e a  dinados ao cumprimento da tarefa. Assim,
          lido. Por curiosidade, apresentam-se três  prespectiva de um futuro incerto, os japoneses  iniciativas como a publicação das "Carta do
          referências a situações bem diferentes,  continuam a agarrar-se à borda das núvens para  CEMA" ou do "Livro Branco sobre Defesa
          mas que ilustram bem este tipo de "crise  não caírem do céu. Até reclamam: "Ainda mais,  Nacional" têm muito mérito.
          existêncial", nos últimos 40 anos:  mais para cima!" Mas para onde é que se pode  Por último e ainda relacionado com este
            Pelos anos 60, preocupado com a perda  subir a partir do céu? Para um céu mais elevado,  tema é frequente um outro erro: confundir
          de valores, João Ameal escreveu, no Diá-  mais perfeito? Então é porque este suposto céu é  reestruturação com uma adaptação clara-
          rio de Notícias:                  apenas o purgatório ("Japão", Lisboa, Difusão  mente forçada aos cortes ou às limitações
            O homem não dispensa "valores absolutos"  Cultural, 1994, p. 38) (edição original de 1993).  orçamentais. As causas, são a já referida
          em que creia e a que se confie para apoiar-se e                      falta de sensibilidade política para os
          proteger-se contra as dúvidas, as lutas, as angús-  Perante a mudança há quem se preocu-  assuntos de defesa e a baixa prioridade
          tias de cada dia. Quando lhe roubam os autênti-  pe apenas com a alteração das estruturas e  que lhes é atribuída: sem que sejam fixa-
          cos "valores absolutos" transfere para sucedâ-  com a alteração da cadeia de comando, ou  dos objectivos políticos, reduzem-se des-
          neos frágeis ou indignos a sua capacidade de fé.  com as designações de cargos e serviços.  pesas. As consequências são as distorções
                                            Isto não é o mais importante.      enormes, que atingem, fundamental-
            Mais tarde, na Revista Marítima Brasilei-  O que interessa é a fixação dos objecti-  mente, o treino, a operacionalidade, o êxi-
          ra de Julho-Setembro de 1989, o Vice-  vos, é repensar a finalidade e adaptar ou  to das missões e o moral da Instituição.
          -Almirante Armando Vidigal, apesar de  criar a doutrina. O resto vem naturalmente  Esperemos que a nova metodologia ini-
          escrever uns meses antes da inesperada  pela necessidade de cumprir aquilo a que  ciada com a publicação deste Livro Branco
          queda do Muro de Berlim, referia-se já aos  nos propusemos.          sobre a Defesa Nacional diferente dos
          problemas das reformas militares que se  Assim, um erro persistente nos cons-  anteriores defina o rumo que nos con-
          começavam a admitir como indispensáveis:  tantes propósitos de reestruturação das  duzirá a bom porto.
            Sem as motivações clássicas, as forças ar-  Forças Armadas tem sido o de eleger a
          madas correm o risco de desemprego estrutu-  reestruturação como "objectivo", quando  António Emílio Ferraz Sacchetti
          ral, isto é, de se tornarem imensas organizações  não passa de um meio para alcançar uma    Vice-Almirante


         4 NOVEMBRO 2000 • REVISTA DA ARMADA
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