Page 8 - Revista da Armada
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Reflexão sobre a
Reflexão sobre a
Formação Militar
Formação Militar
O ERRO CLÁSSICO material bélico recebido apressadamente esteja bem preparado para o combate e
(1), duraram pouco tempo em combate. revele elevada competência profissional,
pessoa humana é primordial no Aquelas dificuldades evidenciaram igual- vive exclusivamente a realidade cas-
saber militar que se encontra per- mente que as deficiências do sistema mi- trense, o que não é compatível nem com
Asonificado no ensino, na apren- litar português estavam associadas ao a interdependência e a necessidade de
dizagem e na utilização da informação atraso das populações rurais, à propensão conhecimento mútuo entre os membros
necessária ao cumprimento da missão das para a burocracia e para o desleixo do das organizações estruturantes da acção
Forças Armadas. Por isso, embora todos aparelho do Estado, e às limitações técni- estratégica do Estado, nem com o desen-
os militares estejam sempre no centro das cas e aos hábitos sedentários dos efec- volvimento e consolidação de uma ade-
mudanças organizacionais e operacionais tivos militares. Perante estas realidades, o quada consciência nacional. No campo
resultantes de vagas de inovação científi- marquês de Pombal reconheceu pronta- oposto encontra-se a perspectiva huma-
ca e tecnológica, só aqueles que adqui- mente o seu erro de avaliação, pelo que nista, que pretende produzir um militar
rirem apropriados conhecimentos teóricos lançou amplas reformas da instrução e do com um saber universal (4). Esta perspec-
e práticos representarão cabalmente a treino das Forças Armadas. Coube ao tiva, cuja génese se encontra muito ligada
organização militar, serão o seu símbolo conde de Lippe a complexa tarefa de pro- aos exércitos de conscrição, secundariza
e o seu padrão avaliador de desempenho. ceder a uma profunda reorganização do a utilização de saberes especializados no
Sebastião José de Carvalho e Mello, exército, direccionada, entre outros desenvolvimento de capacidades para
conde de Oeiras e marquês de Pombal, aspectos (2), para os métodos de instru- enfrentar várias exigências, novos desa-
ascendeu ao cargo de primeiro ministro ção e treino. No âmbito desta reorganiza- fios e acrescidas responsabilidades, pelo
convencido que militares bem formados ção foi criado o Real Colégio dos Nobres, que produz um militar com um saber des-
poderiam interferir na política interna; onde oficiais estrangeiros contratados lec- ligado das exigências técnicas da edifica-
para além disso, não possuía uma ideia cionaram as profissões técnicas do exér- ção, da organização e do emprego das
clara sobre o papel das Forças Armadas cito (artilharia e engenharia). A Marinha, Forças Armadas. Por isso, os militares,
na acção externa do Estado. A conjuga- então dirigida pelo ministro Martinho de pouco depois de terem terminado os seus
ção daquele preconceito com esta falta Mello e Castro (3), beneficiou igualmente cursos, consideram que as matérias
de visão estratégica repetiu-se diversas de grandes reformas, pelo que adquiriu aprendidas com tanto esforço, pouco im-
vezes ao longo dos últimos três séculos e um potencial há muito perdido. Para a portam para o seu trabalho, pelo que se
levou os governantes a relegar para plano formação dos oficiais das Forças Armadas interessam, ou pelo que pretendem ser.
secundário a formação militar. As conse- e, após a queda de Pombal em 1777, já Geraram-se assim frustrações decorrentes
quências deste erro clássico têm sido se- no reinado de D. Maria I, foram criadas a de a formação adquirida não ser decisiva
melhantes às verificadas em 1762, mal o Academia Real de Marinha, percursora para compreender e participar activa-
país se envolveu na guerra dos sete anos da Escola Politécnica (1779), a Compa- mente na tarefa comum da organização
(1756-1763), quando o governo foi obri- nhia Real de Guardas-Marinhas (1782), militar onde se integram. Na actualidade
gado a contratar o general prussiano, percursora da Escola Naval e a Academia essas frustrações são sublimadas com
conde Guilherme de Schaumburg-Lippe, Real de Fortificações, Artilharia e Dese- esforços para arranjar boas colocações,
secundado por um corpo de militares es- nho Militar (1790), percursora da Acade- sobretudo as poucas que conferem algum
trangeiros, para comandar e enquadrar as mia Militar . estatuto social. Estou certo que o militar
forças do exército português. Curiosa- em formação deve ter acesso à herança
mente, a essência das grandes lições AS PERSPECTIVAS ANTAGÓNICAS do passado, referida pelos humanistas.
deste conflito também se repetiram no Contudo, parece-me que o deve fazer
tempo. Na realidade, o ultimato da Fran- Desde esta época que é possível identi- numa perspectiva mais vasta do que a
ça para Portugal abandonar a aliança lu- ficar no seio das Forças Armadas por- inerente à civilização ocidental e à tra-
so-britânica, seguido da invasão do ter- tuguesas um persistente e, por vezes, dição judaico-cristã. Vivemos na era da
ritório nacional por forças franco-espa- intenso debate acerca da formação mili- globalização, pelo que o militar portu-
nholas, demonstraram claramente a ne- tar, através do confronto de duas perspec- guês necessita de saber apreciar e convi-
cessidade de o país dispor de umas For- tivas principais. A perspectiva tecnocráti- ver com múltiplas culturas e tradições, e a
ças Armadas eficazes para, perante outras ca, cuja génese se encontra muito ligada sua formação deve ser menos livresca e
nações, afirmar a vontade nacional. As às reformas de Pombal, afirma que o mili- direccionada para o treino da percepção
dificuldades verificadas durante a cam- tar apenas deve ter o saber específico ne- e da análise. Embora as perspectivas tec-
panha militar, comprovaram que não bas- cessário às missões das Forças Armadas. nocrática e humanista dominem o debate
tava armar apressadamente cidadãos Esta perspectiva privilegia a especializa- sobre a formação militar, não sou adepto
dotados de virtudes patrióticas, de brio ção técnica sectorial, pelo que origina um de nenhuma delas, porque ambas aten-
profissional e de coragem física. Com militar desvinculado de aspectos funda- dem exclusivamente a aspectos sectoriais,
efeito, os soldados portugueses, com es- mentais da sociedade que deve servir. o que traduz um certo “totalitarismo inte-
cassa instrução militar e inadaptados a Com efeito, embora o militar tecnocrático lectual” relativamente ao conceito de mi-
6 JANEIRO 2000 • REVISTA DA ARMADA