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Reflexão sobre a
                         Reflexão sobre a



                      Formação Militar
                      Formação Militar










         O ERRO CLÁSSICO                    material bélico recebido apressadamente  esteja bem preparado para o combate e
                                            (1), duraram pouco tempo em combate.  revele elevada competência profissional,
              pessoa humana é primordial no  Aquelas dificuldades evidenciaram igual-  vive exclusivamente a realidade cas-
              saber militar que se encontra per-  mente que as deficiências do sistema mi-  trense, o que não é compatível nem com
         Asonificado no ensino, na apren-   litar português estavam associadas ao  a interdependência e a necessidade de
         dizagem e na utilização da informação  atraso das populações rurais, à propensão  conhecimento mútuo entre os membros
         necessária ao cumprimento da missão das  para a burocracia e para o desleixo do  das organizações estruturantes da acção
         Forças Armadas. Por isso, embora todos  aparelho do Estado, e às limitações técni-  estratégica do Estado, nem com o desen-
         os militares estejam sempre no centro das  cas e aos hábitos sedentários dos efec-  volvimento e consolidação de uma ade-
         mudanças organizacionais e operacionais  tivos militares. Perante estas realidades, o  quada consciência nacional. No campo
         resultantes de vagas de inovação científi-  marquês de Pombal reconheceu pronta-  oposto encontra-se a perspectiva huma-
         ca e tecnológica, só aqueles que adqui-  mente o seu erro de avaliação, pelo que  nista, que pretende produzir um militar
         rirem apropriados conhecimentos teóricos  lançou amplas reformas da instrução e do  com um saber universal (4). Esta perspec-
         e práticos representarão cabalmente a  treino das Forças Armadas. Coube ao  tiva, cuja génese se encontra muito ligada
         organização militar, serão o seu símbolo  conde de Lippe a complexa tarefa de pro-  aos exércitos de conscrição, secundariza
         e o seu padrão avaliador de desempenho.  ceder a uma profunda reorganização do  a utilização de saberes especializados no
         Sebastião José de Carvalho e Mello,  exército, direccionada, entre outros  desenvolvimento de capacidades para
         conde de Oeiras e marquês de Pombal,  aspectos (2), para os métodos de instru-  enfrentar várias exigências, novos desa-
         ascendeu ao cargo de primeiro ministro  ção e treino. No âmbito desta reorganiza-  fios e acrescidas responsabilidades, pelo
         convencido que militares bem formados  ção foi criado o Real Colégio dos Nobres,  que produz um militar com um saber des-
         poderiam interferir na política interna;  onde oficiais estrangeiros contratados lec-  ligado das exigências técnicas da edifica-
         para além disso, não possuía uma ideia  cionaram as profissões técnicas do exér-  ção, da organização e do emprego das
         clara sobre o papel das Forças Armadas  cito (artilharia e engenharia). A Marinha,  Forças Armadas. Por isso, os militares,
         na acção externa do Estado. A conjuga-  então dirigida pelo ministro Martinho de  pouco depois de terem terminado os seus
         ção daquele preconceito com esta falta  Mello e Castro (3), beneficiou igualmente  cursos, consideram que as matérias
         de visão estratégica repetiu-se diversas  de grandes reformas, pelo que adquiriu  aprendidas com tanto esforço, pouco im-
         vezes ao longo dos últimos três séculos e  um potencial há muito perdido. Para a  portam para o seu trabalho, pelo que se
         levou os governantes a relegar para plano  formação dos oficiais das Forças Armadas  interessam, ou pelo que pretendem ser.
         secundário a formação militar. As conse-  e, após a queda de Pombal em 1777, já  Geraram-se assim frustrações decorrentes
         quências deste erro clássico têm sido se-  no reinado de D. Maria I, foram criadas a  de a formação adquirida não ser decisiva
         melhantes às verificadas em 1762, mal o  Academia Real de Marinha, percursora  para compreender e participar activa-
         país se envolveu na guerra dos sete anos  da Escola Politécnica (1779), a Compa-  mente na tarefa comum da organização
         (1756-1763), quando o governo foi obri-  nhia Real de Guardas-Marinhas (1782),  militar onde se integram. Na actualidade
         gado a contratar o general prussiano,  percursora da Escola Naval e a Academia  essas frustrações são sublimadas com
         conde Guilherme de Schaumburg-Lippe,  Real de Fortificações, Artilharia e Dese-  esforços para arranjar boas colocações,
         secundado por um corpo de militares es-  nho Militar (1790), percursora da Acade-  sobretudo as poucas que conferem algum
         trangeiros, para comandar e enquadrar as  mia Militar .               estatuto social. Estou certo que o militar
         forças do exército português. Curiosa-                                em formação deve ter acesso à herança
         mente, a essência das grandes lições AS PERSPECTIVAS ANTAGÓNICAS      do passado, referida pelos humanistas.
         deste conflito também se repetiram no                                 Contudo, parece-me que o deve fazer
         tempo. Na realidade, o ultimato da Fran-  Desde esta época que é possível identi-  numa perspectiva mais vasta do que a
         ça para Portugal abandonar a aliança lu-  ficar no seio das Forças Armadas por-  inerente à civilização ocidental e à tra-
         so-britânica, seguido da invasão do ter-  tuguesas um persistente e, por vezes,  dição judaico-cristã. Vivemos na era da
         ritório nacional por forças franco-espa-  intenso debate acerca da formação mili-  globalização, pelo que o militar portu-
         nholas, demonstraram claramente a ne-  tar, através do confronto de duas perspec-  guês necessita de saber apreciar e convi-
         cessidade de o país dispor de umas For-  tivas principais. A perspectiva tecnocráti-  ver com múltiplas culturas e tradições, e a
         ças Armadas eficazes para, perante outras  ca, cuja génese se encontra muito ligada  sua formação deve ser menos livresca e
         nações, afirmar a vontade nacional. As  às reformas de Pombal, afirma que o mili-  direccionada para o treino da percepção
         dificuldades verificadas durante a cam-  tar apenas deve ter o saber específico ne-  e da análise. Embora as perspectivas tec-
         panha militar, comprovaram que não bas-  cessário às missões das Forças Armadas.  nocrática e humanista dominem o debate
         tava armar apressadamente cidadãos  Esta perspectiva privilegia a especializa-  sobre a formação militar, não sou adepto
         dotados de virtudes patrióticas, de brio  ção técnica sectorial, pelo que origina um  de nenhuma delas, porque ambas aten-
         profissional e de coragem física. Com  militar desvinculado de aspectos funda-  dem exclusivamente a aspectos sectoriais,
         efeito, os soldados portugueses, com es-  mentais da sociedade que deve servir.  o que traduz um certo “totalitarismo inte-
         cassa instrução militar e inadaptados a  Com efeito, embora o militar tecnocrático  lectual” relativamente ao conceito de mi-

         6 JANEIRO 2000 • REVISTA DA ARMADA
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