Page 9 - Revista da Armada
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litar bem formado. De igual modo, ambas  das culturas associadas. Erros como os  que a tradição histórica portuguesa de-
         reduzem a iniciativa do indivíduo, fomen-  cometidos em Portugal na década de 80  verá incorporar o âmago da instrução dos
         tando a passividade dos escalões intermé-  deste século, em que se privilegiou o  nossos militares, garantindo assim a inte-
         dios e esmagando a originalidade e o  ambiente operacional e se desprezou a  riorização das representações, dos valo-
         pensamento independente. Como tal,  intelectualidade, no futuro terão custos  res e das crenças essenciais da sociedade
         geram militares amorfos e carreiristas,  muito graves, cujos efeitos, por serem  nacional. Neste contexto urge reavaliar e,
         cuja grande preocupação é adquirir ma-  dificilmente reversíveis num país com a  sempre que necessário, reajustar os cur-
         nhas para sobreviver na selva burocrática  reduzida capacidade financeira de  rículos de história dos nossos estabeleci-
         e rigidamente corporativa onde se mo-  Portugal, provocarão preocupantes  mentos militares de ensino, tendo no
         vem, o que implica fazer apenas o que  desvinculações definitivas de militares  entanto o cuidado de não cometer o erro
         lhes ordenam, descartando continuamente  qualificados e dedicados.    de adoptar uma abordagem estritamente
         responsabilidades para os superiores                                  historiográfica, essencial para a formação
         hierárquicos.                      O DESAFIO DO MOMENTO               académica, mas de duvidosa eficácia
                                                                               como elemento estruturante da visão mi-
         UMA ALTERNATIVA                      No passado, devido às exigências im-  litar. Por experiência própria, estou con-
                                            periais, a acção do Estado português  victo da necessidade daquela abordagem
           De uma análise que efectuei recente-  sempre foi global na economia, na políti-  ser ponderada com sínteses polemológi-
         mente ao relacionamento do saber com a  ca, nos aspectos sociais e nos assuntos  cas, que identifiquem e caracterizem os
         formação militar entre os séculos XVIII e  militares. Por isso, as reformas da for-  aspectos políticos, estratégicos, opera-
         XX, concluí que, em alternativa às pers-  mação militar, realizadas entre os séculos  cionais e técnicos ligados aos conflitos
         pectivas tecnocrática e humanista, parece  XVIII e XX, obedeceram a dois objectivos  decisivos para a vida do país. Só desta
         preferível adoptar uma postura que confi-  fundamentais: o primeiro visou preservar  forma parece possível extrair as lições
         ra capacidade para os militares actuarem  os mecanismos destinados a transformar  que enriquecem a consciência nacional
         em dois ambientes: o intelectual, que se  as tradições locais, particulares e sepa-  dos nossos militares.
         centra nas palavras e nas idéias, e o ope-  radas de cada militar, em compromissos  Com a adopção de padrões comuns de
         racional, que se baseia nos meios e no  relativamente ao sentir nacional, num  formação e o reforço da consciência
         trabalho. Como intelectuais, os militares  conceito global de excelência e num pro-  nacional, o militar português ficará
         necessitam de organizações que lhes per-  fundo respeito por todos os membros da  preparado para actuar num mundo glo-
         mitam ensinar e aprender os seus saberes  sociedade nacional; o segundo destinou-  bal, ocidentalizado e progressivamente
         especializados; este é o âmbito das Aca-  -se a criar os mecanismos que estimula-  tribalizado; será militar do seu país no
         demias, dos Institutos Superiores dos  ram e regularam a participação dos mili-  mundo, na capacidade, na visão, no hori-
         ramos e de outros estabelecimentos mi-  tares na vida nacional, o que nem sem-  zonte e na informação. Com efeito, para
         litares e civis de ensino. Como operacio-  pre foi compatível com os direitos de  além de conhecer os aspectos técnicos
         nais os militares devem encarar o saber  cidadania. Contudo, no final do século  que permitem sobreviver no campo de
         como um meio a utilizar para alcançar  XX a associação dos Estados em espaços  batalha e os aspectos humanos que as
         um fim; este é o âmbito dos estados-  políticos, económicos, sociais e militares  novas missões determinam, disporá do
         -maiores, dos comandos, das forças e das  muito vastos, com o consequente desen-  alimento que fortalece permanentemente
         unidades. Tradicionalmente o ambiente  volvimento de políticas comuns, lançou  as suas raízes e que enriquece continua-
         intelectual e o ambiente operacional en-  um novo e complexo desafio à instrução  mente a sua própria cultura. Em suma,
         contram-se separados, embora relacio-  dos militares portugueses. Com efeito,  estará apto a defender conscientemente a
         nando-se entre si. Alguns militares conse-  por um lado, o alargamento da NATO e  sociedade nacional nos esforços estra-
         guem conciliar uma carreira simultanea-  da UEO, a constituição de forças multi-  tégicos empreendidos pelo Estado.
         mente intelectual e operacional. Assim  nacionais e de coligações adhoc, e a
         acontece porque estes dois ambientes  realização de operações conjuntas e
         existem mais como pólos da actividade  combinadas, determinam a adopção de             António Silva Ribeiro
         militar, do que como contradições; neces-  padrões aliados na formação militar,                      CFR
         sitam um do outro de forma equilibrada  essenciais para garantir a partilha dos
         para que não se anulem e gerem a total  valores e interesses que viabilizam, quer
         frustração dos membros da organização  a assunção de uma estratégia baseada no  Notas:
         militar. Com efeito, o ambiente intelec-  risco, quer o desenvolvimento de con-  1) Este material foi cedido pela Grã-Bretanha.
         tual, caso não seja ponderado pelo ambi-  sensos. Para se adoptarem tais padrões  2) A disciplina e o sistema defensivo das fronteiras.
         ente operacional, torna-se uma confusão  de formação, afigura-se essencial cuidar  3) Os navios mandados construir por este grande
         onde cada militar faz o que lhe interessa,  do treino das línguas de trabalho e da  ministro tiveram um papel relevante a partir
                                                                               de 30 de agosto de 1780, quando o governo tomou
         mas nenhum produz nada de interesse. O  compatibilidade entre os objectivos e os  diversas providências para evitar que os corsários
         ambiente operacional, sem as compen-  programas académicos dos institutos  ingleses desrespeitassem a neutralidade portuguesa
         sações do ambiente intelectual, torna-se  superiores de cada ramo e dos institutos  na guerra da independência dos EUA. Esse papel
         cinzento, absurdo e sem sentido. Quando  de defesa nacional existentes em cada  tornou-se decisivo a partir de 13 de julho de 1782,
         ambos se equilibram, surge criatividade e  país aliado. Para além disso, parece-me  quando Portugal aderiu à chamada “neutralidade
                                                                               armada”, proclamada por Catarina da Rússia,
         ordem, a que nós militares chamamos  importante reforçar a participação de  com o objectivo de proteger as marinhas
         sentido de missão. O militar, para viver e  militares portugueses em colégios de  de comércio de países neutros naquele conflito.
         trabalhar nestes dois ambientes, deve ser  defesa aliados, tendo em vista aprofundar  Em 1807 os principais navios acompanharam
         formado tendo como referência os objec-  a compreensão mútua, o conhecimento  a família real para o Brasil e lá ficaram, pelo que,
                                                                               no início do século XIX, Portugal não possuía
         tivos estruturantes da organização militar.  sobre o acesso e o processamento da  uma armada adequada às necessidades do país,
         Depois de completada a sua formação  informação, e a capacidade para apre-  nomeadamente à protecção do comércio
         básica deve transitar de uma função ope-  sentar e discutir visões pessoais em ambi-  e dos recursos, à realização de explorações
         racional para outra intelectual, tendo em  entes multinacionais. Por outro lado, o  científicas, ou à afirmação da soberania.
         vista adquirir uma perspectiva e um senti-  desenvolvimento de políticas comuns de  4) Por isso deu origem a que os militares do século
                                                                               XIX se constituíssem como uma elite com ampla
         do de equilíbrio, essenciais ao respeito  defesa impõe o fortalecimento da cons-  participação nas actividades políticas, económicas
         por ambos os ambientes e à compreensão  ciência nacional. Para isso, considero  e sociais do país.
                                                                                       REVISTA DA ARMADA • JANEIRO 2000  7
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