Page 93 - Revista da Armada
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to humanístico mais uma porta de penetração para o
conhecimento do Mundo, enquanto essas naus se
balançavam nas águas do Malabar levando aí o
expoente duma "Civilização Renascente", Leonardo
de Vinci dava os últimos toques na sua famosa "Ceia"
e preparava os esboços para a sua histórica
"Gioconda". A "Sixtina", em Roma, erguia--se nas suas
paredes gigantescas mercê do génio de Bramante e
Miguel Angelo, pouco depois, haveria de fixar para
sempre nas largas pinceladas das cenas do "Juizo
Final" a consagração dos homens que abriram as por-
tas do Mundo. Esses homens, estabeleceram ali as
primeiras relações com os Samorins, comerciaram,
levaram produtos, tornaram a ir, voltaram de novo,
em viagens de anos, sempre mais numerosos, até que
o Árabe, sacudido de súbito, desperta para a reali-
Patmarins e tonas subindo o Rio Mandovi, Nov. 1957. dade. E são agora as lutas entre aqueles que vinham
de longe buscar aquilo que estes ciosamente guar-
mente pejadas. O comércio era florescente e estendia-se tão longe davam. E o Arábico foi teatro de lutas gigantescas, onde ficou provado
como Zanzibar, Ceilão, Cambaia e Pérsia. Mas, como tudo nesta vida, o valor do Ocidente, através de muito heroísmo, de muitas vidas
também Govapuri nasceu, cresceu e morreu. A sua grandeza foi a sua ceifadas no verdor dos anos, jovens heróis imolados no altar da Pátria e
ruína. A armada enorme que a sustinha e lhe dava poder no mar, viu-se no altar de Deus, abordagens, fragores de bordadas, cascos despedaça-
desfeita à boca da barra, enxurrada nos baixios e parcéis da costa, por dos, fogos roendo raivosos o cavername das naus e galés, um velho pai
temporal ponteiro, fora da estação, quando ia em missão de guerra. vingando a morte do filho, em fim toda uma gesta gloriosa, rude, des-
Invasões, batalhas e cercos fizeram o resto, até que os maometanos, gastante, permanente...
chegados à Índia havia muito, a arrazaram e desfizeram. Era por volta Um dia o "Imperador do Mar", manda ao Oriente um novo "Alexan-
de 1470. De Govapuri, ficou apenas um nome na lembrança – Goa dre", um construtor de Impérios!. Corrido o Arábico de lés-a-lés, afer-
Velha – e uma pequena aldeia cujas casas assentam nos arruinados rolha com estrondo as portas do Suez e do Pérsico ante os olhos aterra-
alicerces das outrora florescentes mansões da que foi a maior cidade do dos de turcos e mouros, e o conquistador volve os olhos para Goa, a
Konkau – "o Paraíso de Indra" – onde os jardins eram magníficos e os cidade magnífica: e considerando que seria de alto e grande serviço
brâmanes liam e estudavam os Vedas. para El-Rei seu Senhor, resolve tomá-la. Assim fez nos princípios de
Os invasores estabeleceram a nova capital nas margens do 1510, ajudado pelos hindús que suportavam mal o jugo muçulmano.
Mandovi, na aldeia de Ela. Na sequência daquele funesto aconteci- Pela primeira vez Goa foi terra portuguesa. Adil Khan, despojado,
mento Adil-Shah – o rei mouro – a que os portugueses mais tarde rumina a reconquista e a dourada e preciosa Goa muda de mão pouco
chamaram Idalcão, trouxe a nova capital a um plano de importância depois. Agora, a nova tomada de Goa não é proeza fácil, mas o
que jamais outra conhecera até então em todo o Malabar. Capitão do Mar não recua ante dificuldades. O Mandovi exibe nesses
Era a célebre cidade de Goa, o empório do Oriente, onde o árabe dias uma pompa marítima nunca vista, pejadas as suas águas pelos
estabelecera o seu domínio do Industão, sumptuosa como não havia cascos das naus alinhadas num cerco de ferro e fogo. Rompem-se as
outra em toda a costa. Acontecia isto na remota era de 1489. De Goa, muralhas, forçam-se as entradas e o grande Capitão tem a alegria de
e em direcção a Goa, cruzavam levados nas asas do vento e rumados presenciar, do alto local que é hoje o Miradouro do Rosário, o tropel
por pilotos seguros, os navios árabes que em rumos directos cruzavam dos seus homens obrando prodígios e assenhoreando-se da cidade.
o golfão Arábico para levar até aos portos das caravanas do Pérsico e Eram 25 de Novembro de 1510, dia de Stª Catarina.
Suez as maravilhas orientais que faziam o esplendor dos sultões da Erguem-se preces a Deus e levantam-se as muralhas. Sob um
Turquia e Egipto e a riqueza de Génova e Veneza, que as carreavam impulso vivificador, Goa torna-se para sempre Portuguesa e co-
parcamente a todas as cortes ricas da Europa. nhece no século XVI o maior esplendor que já viram terras do
É então que tem lugar a parte mais interessante desta história. Por Oriente. "Quem viu Goa escusa de ver Lisboa". Viajantes arribados
esse tempo, andavam os reis dum país do ali ao fito da fortuna, disseram dela ma-
ocaso – os Imperadores do Mar – arrojan- ravilhas. Os triunfos que a dourada Goa
do a ele lenhos frágeis mas pilotados conheceu ficaram memoráveis. Mas
audazmente, na tentativa de lograr achar uma vez mais, a lei da vida imperou; a
outro caminho que os pusesse em contacto cidade nasceu, viveu e morreu... O po-
directo com essas paragens distantes. Rei- derio português foi declinando; a
nado após reinado, geração após geração, importância da cidade desvaneceu-se
essa força manteve o élam que lhe im- lenta mas progressivamente; outros ter-
primira o "Primeiro Iluminado" e muito ritórios se vieram juntar aos existentes,
tempo depois – era isto em 1498 – surdi- mas a dourada Goa não foi salva. A
ram no Malabar, vindos dessas paragens peste, a incúria dos homens e o clima
longínquas, os homens do Ocidente, em fizeram o resto. A capital foi mudada.
três naus estranhas, de talhe nunca visto, A que fora outrora a florescente Goa é
desbotadas por muitos mares, ventos e hoje a triste e silenciosa Velha-Goa, onde
sóis. Ninguém iria jurar que ali estava todo dentre os coqueiros emergem como
o valor duma civilização a abrir as portas gigantes em desespero por luz e ar, as tor-
do Mundo, a proporcionar a comunhão res desbotadas ou em ruínas de templos
de culturas, a abrir o caminho ao inter- majestosos".
câmbio universal, ao conhecimento cientí- Era esta história quase triste que queria
fico, a rasgar estradas por onde, a passos contar-vos...
gigantes, iriam cruzar os frutos da Ci- Mas Goa não tem só história; tem a
vilização e os homens do Mundo inteiro. própria terra que não é um mito.
Nesse momento em que se abria ao espíri- Uma tona no Rio Zuari, Goa. Para quem vem do mar, Goa desilude. ✎
REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2000 19