Page 92 - Revista da Armada
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Goa
Goa
esta ronda à volta do Mundo trazemos os olhos cheios das Mas Goa tem também os seus sortilégios, as suas glórias, a fama, a
suas múltiplas maravilhas que, como contas dum rosário de história, as naus, os cercos, as arrancadas épicas, a imolação de
Nencantos, se foram desfiando ante o nosso espírito mais ou jovens heróis, a bravura dum povo, as rotas do Oriente abertas à
menos receptivo e impressionável. custa de brados, sacrifícios, naufrágios, lágrimas e saudades eternas;
Fomos embalados ao calor exótico do Mar das Caraíbas, onde e, nos nossos dias, foi a ara onde se imolou lado a lado o sangue de
sobressai essa pérola magnífica – S. João de Porto Rico. muitos portugueses que ali foram defender o património de séculos.
Experimentámos a sensação de andar, como se fora um paradoxo, Ali morreu o homem que lavrara na força da vida os campos do
através de lagos, montes, por caminhos que só o engenho do homem Minho, aquele que gastara os anos estudando com os olhos postos
poderia transformar em estrada navegável. Fomos chocados por num futuro que a glória cortou, o negro que plantara café pelas
padrões de vida e métodos e manifestações de progresso que nos savanas de Angola, o landim e o goês! E como espinho cravado na
deixaram a impressão de que o homem pode sem dúvida fazer desta cúpida alma de quem dirige os destinos da vizinha nação, ali ficou a
terra uma bela mansão para passar a sua curta vida. atestar a insidiosa mentira a morte heróica de muito soldado goês em
defesa do seu Portugal.
Os homens passaram, as lágrimas correram por muitas terras do
Império, a posição foi mantida e Goa ficou porque vale para nós
como Província dilecta na unidade da Nação. Goa tem todo um san-
tuário histórico, inesgotável e tem a própria terra que não é um mito,
que está presente e que tem também a sua beleza de jeito peculiar.
Navegamos os mesmos mares onde tantas naus portuguesas se ba-
lançaram ou até buscaram o caminho do fundo e do olvido... Mas
quero agora contar-vos uma pequena história:
"Era uma vez uma encruzilhada do Mundo – a Índia...
Nela se lançaram, vindas de muitas partes, gentes de raças várias.
Nela se fundiram muitos povos e credos desde os drávidas aos arianos
e gregos. Os Deuses cuidaram essa terra com amor e carinho.
Parashurama – uma encarnação de Visnú – olhou um dia o mar do
alto dos Gates e, tesando o seu arco de fogo, desferiu a seta que o fez
recuar de susto, deixando a descoberto a fértil e suave terra de
Konkau. Essa seta divina feriu o mar em Benaulim que dessa lenda
Patmarin no mar, a muitas milhas da costa. conserva o nome. Foram ali colocadas, sob a protecção dos Deuses,
famílias de brâmanes que começaram cultivando a terra e alicerçando
Arremessados depois no pêgo do Pacífico fomos aninhar-nos nessa um povo e uma religião.
cintura maravilhosa de ilhas que tem a sua jóia límpida e fascinante Os rios eram mansos e preguiçosos, a terra úbere, as tonas podiam
em Honolulu. Aí, pareceu-nos que se abriam para nós as portas dum penetrar os veios de água até longe, no interior. A primeira cidade ca-
paraíso onde doidamente quisemos aurir toda a beleza e encantos pital conhecida nessa mansão banhada pelo Mandovi e Zuari foi
inesgotáveis das suas praias, dos seus píncaros encimados de nuvens Chandrapura que hoje corresponde a Chandor, uma aldeia diminuta
suspensas numa atmosfera de tons raros, das suas gentes, do seu exo- nas margens deste rio. Fortificada, progrediu em tamanho e fama, mas
tismo, das suas danças, cantares lânguidos, toadas sensuais, requebros os reinos vizinhos muitas vezes a depredaram com armadas e exér-
ondulantes de mulheres – que digo eu – talvez visões... citos, em lutas e tentativas de saque. Os reis da dinastia Kadamba
O mar preguiçoso – ele mesmo coleante – emparceirando na deram-lhe fama e poder, mas, achando melhor lugar para estabelecer
cumplicidade da Lua, uma fogueira ondulante, guitarras tangendo a capital, mudaram-se para Govapuri, na margem norte do Zuari um
dolentes, figuras vagas de moças que dançam na areia a fímbria de pouco a juzante de Cortalim.
prata na crista das ondas, o frémito das palmas dos coqueiros, tudo Govapuri é o nome antigo de que veio Goa. Essa foi uma maravilho-
isso é a realidade dum sonho vivido!... sa cidade a que os reis
Jogados ao mar os colares de flores com beijos de saudade, fomos Radambas deram fama
dolorosamente arrancados a essa mansão e lançados noutra de e grandeza. Chama-
encantos não menos estranhos. Aí, era o Japão que nos abria as por- ram-lhe o "Paraíso de
tas! Luzes multicores, caracteres singulares, balões, arcos, templos – Indra". O poema sagra-
outra vez luzes, côr, mais luzes, mais côr – e sobretudo isso, o delica- do Suta Samhita, des-
do encanto de figurinhas de "Saxe" envolvidas em cabaias e kimonos, creve-a nestes termos:
pés de fada, olhar oblíquo, sorrisos, mais sorrisos e a graça impon- "A simples vista de
derável sempre presente no gesto e no cumprimento... Mal tivemos Govapuri limpa dos
tempo de penetrar o encanto duma terra única já um suspiro fundo pecados cometidos em
nos arrancava do êxtase para nos obrigar a contemplar, agora dos existências pretéritas
longes do mar, o recorte caprichoso das suas costas, a beleza incom- da mesma forma que o
parável das suas ilhas – onde nem o vulcão faltou, a assinalar um tipo sol nascente varre as
raro de paisagem. trevas da noite..." Ela
Depois, foi todo um Oriente nas asas dos juncos, nas correrias dos era o principal centro
rikshaws, nos usos e costumes, no barulho, nas festas, nas luzes, no religioso do Konkau
bulício, na policromia e nas gentes por demais diversas... com santuários magní-
Receio que, percorridas agora tantas milhas do mar, a nova para- ficos, e acorria ali tanto
gem não vos possa oferecer os mesmos encantos, mantidos em ácume povo que as suas ruas
por uma expectativa de antemão criada. estavam permanente- Margem do Mandovi em Ribandar.
18 MARÇO 2000 • REVISTA DA ARMADA