Page 95 - Revista da Armada
P. 95

Pangim, passamos em Mardol e                                              do encosta abaixo, e a erva maninha,
         Manguexa. Aqui, existe talvez o melhor                                    logo começou de cobrir os escombros,
         e mais rico templo hindú de Goa.                                          ondulando vagamente ao sopro da brisa.
           Entre as atracções do templo, a das bai-                                Nos píncaros da torre, arbustos levados
         ladeiras não é das menos aliciantes. Pro-                                 não se sabe por que mão, vão engrossan-
         fissionais da dança e doutros pormenores                                  do o caule, e mergulhando as raízes nas
         inconfessáveis, os seus requebros, ao som                                 juntas das pedras, roendo lentamente
         de charangas de tons incríveis, onde pre-                                 mas com segurança os restos do gigante.
         dominam o grito anazalado da palheta e                                    Ao lado são as ruínas do Pópulo. Ali,
         o brado estentórico da tuba, de mistura                                   uma vez por ano, na dor da paisagem, os
         com muita e variada percussão – os seus                                   padres encomendam, em suas ladaínhas
         requebros ia eu dizendo, têm acentua-                                     tristes, as almas dos mártires goeses. Por
         ções tigrinas. Pertencem ao templo, e,                                    toda a parte se erguem cruzes ao céu.
         aqueles a quem geram, por mor da dan-                                     Outras, já velhas e gastas, jazem por
         ça, para ali ficam também, tangendo uns,                                  terra, e por entre os seus restos, a árvore
         bailando outras...                                                        que se matou sofregamente ergue no ar a
           São, sem dúvida, curiosos estes tem-                                    súplica dos ramos secos a pedir a água
         plos hindús!...                                                           das monções. Nas noites serenas, quan-
           Porém nas esferas mais sublimadas da                                    do se faz o silêncio e a fantasmagoria do
         religião hindú, encontra-se uma filosofia                                 luar brinca por entre esses escombros,
         de conceitos elevadíssimos que pode sem                                   vencidos, mas grandiosos e altivos, vem-
         desfavor ombrear com outras ideologias                                    -me à memória a evocação dos acordes
         por mais evoluídas que sejam na história                                  impressionistas dum músico célebre – "E
         do espírito. O ascetismo dos seus Yoguis,  Igreja e cruzeiro em S. Lourenço, Goa.  a Lua desce sobre o templo que foi".
         não encontra paralelo em qualquer credo                                    Deixemos para trás esta visão de ruína
         e a senda que levado homem a Deus tem ali uma vivência que raro se  e grandeza. Alguns quilómetros mais, marginando o Mandovi, à vista
         encontra alhures. O número daqueles que pela prática do autodomínio  de "tonas" e "patmarins" cujo velame e casco nos faz lembrar outras
         comunga no Nirvana com o Espírito – Princípio do que é – último e  eras, e estamos em Pangim, a actual cidade de Goa e Capital da
         ansiado elo das relações Homem – Deus – é bastante numeroso. A  Província. Tereis ocasião de a ver e de lhe percorrer as ruas e avenidas.
         soma de escritores filósofos pensadores fecundos e esclarecidos, de pre-  Passemos pois adiante, atravessemos o Campal e olhemos o forte dos
         ciosa comparticipação nas conquistas do espírito, é também apreciável.  Reis Magos a barrar a passagem do rio. Num cotovelo, admiremos
         Mas deixemos estas considerações vagas sobre um problema de sem-  essa peça enorme de bronze, bocejando eternamente, num desafio
         pre, e continuemos mais terra a terra a nossa ronda.  mudo ao forte fronteiriço. Continuando, temos Gaspar Dias com vista
           Para além de Manguexa e galgado o monte de cujo flanco se admi-  para a enseada da Agoada. Enquadrada pela praça e pérgola, vemos a
         ra uma das mais amplas paisagens de Goa, com todo o vale de  Estátua de Afonso de Albuquerque em hierática postura. Em frente, a
         Combarjua aos pés, e descendo ao canal que o percorre para formar a  fortaleza da Agoada, do outro lado da barra, juncada de basaliscos,
         ilha de Goa, entramos na primeira terra de Tissuari – Banastarim. Ali,  peças e pelouros, atesta o fulgor duma era. Segue-se Caranzalim, com
         mouros contra cristãos e hindús travaram lutas gigantescas, uns atacan-  os seus nateiros e a várzea espapaçada e mais adiante, essa ponta
         do, outros defendendo-se. Como memorial, a bocarra hiante duma  saliente que é o Cabo. Ali, num convento antigo, adaptado, tendo o
         peça árabe cujos pelouros enormes voavam a esfrangalhar panos de  mar por horizonte, reside o Governador Geral.
         muralha, atesta a violência dos embates. Continuemos por algum  Caminhemos até D. Paula e subamos a pérgola que domina o mar.
         tempo. Agora, faça-se silêncio!...                   Trouxe-vos aqui para que vísseis cair a tarde...
           É a Velha-Goa que nos surge nos portais arruinados de S. Paulo,  É tudo sereno... O Sol, ao morrer no mar, ébrio de cor, lança pelo
         aquilo que foi o maior Colégio e Instituto Didáctico de todo o Oriente  céu a pinceladas largas, o anil, o ocre, a prata, o ouro, a chama... E a
         – ali onde queimou seus olhos estudando e ensinando, o que havia de  terra de Goa, já de si vermelha, como que se inflama! O próprio mar
         ser mais tarde S. Francisco Xavier. Caminhemos com passo grave e  tem incrustações de rubis.
         respeitoso por entre os restos duma epopeia gasta. Admiremos as
         riquezas  inestimáveis dos interiores de catedrais e igrejas. S. Caetano a
         arremedar S. Pedro de Roma, a Sé, S. Francisco de Assis, a Basílica do
         Bom Jesus, são templos cuja majestade os coqueiros não conseguem
         esconder. Ali se traduz o esforço duma época que nem as monções,
         nem os homens, em tantos séculos, lograram destruir. A riqueza da
         talha, o dourado das decorações, o lavor dos púlpitos, a imponência
         dos altares, o túmulo do Apóstolo, tudo isso são preciosidades que o
         visitante jamais esquece. Caminha-se entre restos e memórias daquilo
         que foi um rumo a confinar o que outrora era o maior arsenal do
         Oriente, local onde viram a luz grande parte das naus que fizeram
         Portugal grande. Hospitais, ruas, templos e muros, tudo isso jaz em
         silêncio, coberto pelo pó dos anos e pelas raízes das lianas e
         coqueiros.
           Subamos ao Monte Santo. Ali admiremos a mole imensa do
         Convento das Mónicas, S. João de Deus, as ruínas de S. António e
         Nossa Senhora do Rosário, de cujo miradouro se alcança a vista que
         Albuquerque primeiro admirou.
           Nesta subida, uma impressão se colhe, opressiva, magnetizante – a
         vista quase incrível dos restos da igreja e convento dos Agostinhos;
         apenas a empena duma torre se encontra de pé, num equilíbrio que
         desafia a gravidade. O resto ruiu com fragor numa noite tempestuosa
         de monção, não há muitos anos. Blocos enormes rolaram com estron-  São tranquilos os canais de Goa.    ✎
                                                                                      REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2000  21
   90   91   92   93   94   95   96   97   98   99   100