Page 94 - Revista da Armada
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A bocarra do Zuari, hiante, não tem importância nas suas margens. O
morro de Mormugão, onde espreitam restos de história em baluartes
sobranceiros, dormita acachapado à entrada da barra. Seguindo a es-
trada que acompanha a orla fluvial, surge a cidade de Vasco da Gama,
burgo progressivo onde se fará o primeiro contacto com gente goesa. É
muito provável que se encontre durante a digressão, a vaca pachor-
renta, impávida, num soberano e sagrado desprezo por quem transita.
A gente de Goa, dividida em credos e castas, tem costumes singulares.
Mesmo a doutrina cristã não conseguiu extinguir as raízes fundas em
que os princípios das castas assentam. O brâmane hindú ou cristão
despreza o chardó e mais ainda o sudra. Embora não haja a
degradação da intocabilidade, pressente-se a realidade do pária. Ela
porém, felizmente, não é visível. De Vasco da Gama, queria acom-
panhar-vos de longada Goa em fora. Uma estrada nos leva e a um
lado e outro a paisagem é magnífica. A toalha líquida do rio espreita
permanentemente entre os coqueiros e há pedaços de ilha que são
presépios no meio da água. Além, são os trabalhos agrícolas que
decorrem. Juntas de búfalos puxam lentamente arados que mergulham
as relhas na papa da terra. As primeiras chuvas vieram dar vida a toda
a semente escondida no canto mais solitário. O trabalho é em silên-
cio... Não se ouve sequer a melopeia que embala o cansaço.
Mais longe um arrozal acaba de abrir para a luz as suas tenras fo-
lhas. Que verde! É como se o campo fosse uma só esmeralda! No
meio, não raro branqueja um cruzeiro votivo. A cada curva da estrada
ele nos surge, na terra cristã de Goa, por vezes entrando o rio a dentro
como benção que descesse sobre as águas. De onde a onde um cam- Cruz de Goa e Igreja de S. Francisco de Assis, Velha Goa.
panário surge a equilibrar a fachada branca de uma igreja antiga. Um
rancho de garotos, tagarela em volta dum padre de tez bronzeada, espera. Santuário hindú, Quenlá oferece ao visitante uma porção de
pondo um chilreio numa paisagem de silêncio. Em Goa, ouve-se o templos – pagodes lhes chamam – muito embora prefira por mais
silêncio... suave e evocativo o nome de "devalaia". Erguem-se à entrada torres de
Deixemos Cortalim e as barcas de passagem e vamos até Margão. arquitectura caprichosa, decorativas, que se vêem de longe como grito
Aqui, é outra Goa! Vê-se o mouro, o bazar, o comércio, a ruela, o branco no verde do palmar. Lá dentro, é a penumbra, colunas baixas,
banco, o bulício e, como que a benzer tudo isto, uma igreja e um mármores raros, portas chapeadas a prata e o luxo e riqueza do san-
cruzeiro magníficos. Ali a dois passos, temos o Chandernate. Mais per- tuário inviolável a olhos não hindús.
to do céu, a vista espraia-se em redor, abrangendo um panorama de O hindú adora a Trindade, as suas encarnações e outras divindades
sonho. Lá longe o mar; em baixo a cidade; por toda a parte os rios e os que quase são ídolos. Brama, Visnú e Xiva, comandam a vida religiosa
canais arando os campos de arroz... hindú. Por mim prefiro os seus respectivos complementos femininos:
Deixemos Margão, as suas igrejas, a mesquita e cruzemos até Sarasvati (deusa da inteligência e sabedoria), Lackshimi (deusa da for-
Pondá. Façamos alto na ponte de Borim e admiremos o Zuari em todo tuna, do amor e da felicidade) e Parvati (horrenda nos seus múltiplos
o seu esplendor. Além, abrindo um largo V no metal do rio, uma bar- aspectos de destruição e maldade).
caça segue carreando o ferro, com destino a Mormugão. Quem na- São animais sagrados a vaca (segunda mãe, por alimentar com o seu
vegar corrente acima, até Sanvordim, jamais esquece a suprema felici- leite a infância do homem), o búfalo, o elefante (atributo de Indra) o
dade de ter gozado momentos de tanta e tão rara beleza. pavão (atributo de Lackshimi), a cobra (que tem santuários), etc. Há
Um pouco adiante, no vale do Quenlá, é um mundo novo à nossa também plantas sagradas como o tolossim, à porta de cada casa hindú,
como a cruz em cada casa cristã e certas árvores gigantescas
chamadas árvores da gralha (Ficus Indiae). Não raro se encontram à
beira da estrada árvores engrinaldadas de bandeiras multicores, assina-
lando local favorito para o aparecimento do Demo. O goês é, por
atavismo rácico, supersticioso.
Vem agora a propósito contar-lhes uma lenda com o seu quê de
tocante:
"Estando um dia Parvati, esposa de Xiva, a banhar-se descuidada e
preguiçosa, resolveu fazer uma estátua de barro que o seu hábito cáli-
do animou. Trouxe consigo a criatura que lhe fez companhia durante
a suspirada ausência do marido. Decorridos dez anos Xiva, roído de
saudades, entra os varais da sua mansão, mas eis que um jovem lhe to-
lhe o passo num azougue que o seu poder divino num instante resol-
ve, sacando da espada e degolando o atrevido. Parvati sabe do trágico
acontecimento e conta a Xiva como aquele jovem havia nascido e era
seu filho, e as ordens que lhe dera para não permitir que qualquer
desconhecido atravessasse o átrio dos seus aposentos. Xiva, doido,
corre a procurar o cadáver ainda palpitante, mas em parte alguma lhe
encontra a cabeça. Desvairado, lança mão da espada ainda tinta de
sangue, degola ali mesmo o seu melhor elefante e une-lhe a cabeça ao
corpo do jovem que jazia por terra". Assim nascia o Ganesh, divin-
dade venerada em toda a Índia protector contra os maus espíritos e
Deus da colheita. A festa do Ganesh é, de todas, a mais típica de Goa.
De Quenlá a Pondá é um salto, mas não nos deteremos nesta
Templo hindú em Manguexa. cidade de importância restrita. Fechando o arco, de caminho a
20 MARÇO 2000 • REVISTA DA ARMADA