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HISTÓRIAS DA BOTICA (26)
O Anjo do Campo de Santa Clara
O Anjo do Campo de Santa Clara
o limite entre o mito e a realidade semeada, com um aspecto algo assustador do uma sensação de paz ia crescendo den-
fica o espaço em que, na nossa conferido por um par de pupilas opacifi- tro de mim, por dentro, de uma forma que
Nalma, conhecemos a verdade. Esse cadas e com movimentos automáticos, a desconhecia. Quando ultrapassámos o
espaço que cada um sabe onde fica, não é que os eruditos chamariam nistagmo. jardim, por mais que eu procurasse, não
mais do que um sítio de paz, onde mesmo Quando cheguei perto dele tive a sensação encontrava o número que ele pretendia. Foi
aqueles que não se reconhecem na moral – estranha – que estava precisamente à então que, no mesmo tom calmo, ele me
comum se encontram...consigo próprios. O minha espera. Queria ir para uma rua, um perguntou onde estávamos e eu, já
caminho para lá embaraçado, lhe
chegar não é fácil. confessei que não
É uma subida encontrava o dito
cheia de escolhos, número. Foi então
tropeções, medos que, para meu
e – sobretudo – grande espanto, o
muita solidão... meu estranho in-
Conheço algu- terlocutor descre-
mas formas de veu com grande
chegar a esse lugar precisão o hori-
de harmonia. Sen- zonte, incluindo o
tir o mar e o vento. pormenor do pe-
Acreditar no futuro queno café, que
apesar da peso do tinha um toldo
presente. Saber amarelo rasgado e
que somos dife- da senhora – que
rentes uns dos ou- eu consegui vis-
tros. Sorrir, quando lumbrar, curvada,
todos choram. Gri- pelos anos e pelo
tar quando, outros, sofrimento - que
acomodados, ca- aquela hora, dizia
lam...Para muitos ele: “deveria estar
basta rezar. Rezar a apanhar as miga-
a um Deus que lhas, que alguém
sentem vivo, que ali teria deixado
lhes oferece per- para os gatos...” .
dão e libertação... Não refeito da
Não me encontro minúcia da descri-
facilmente nestes ção, fui ainda in-
últimos, nem nessa formado do que
experiência mítica deveria fazer para
de fé...Tenho difi- encontrar a porta
culdade em aceitar verde – a cor da
o ritual frio. A roti- esperança – por
na das palavras onde ele pretendia
repetidas. A falta entrar. Lá chegado,
de ousadia....Leio a deparei com uma
Bíblia. Lá encon- casa da Lisboa
tro, mais que o mi- antiga e uma porta
to, uma descrição de madeira com
revolucionária uma campaínha
(mesmo para os gasta, dessas que
tempos actuais) de igualdade e paixão... número, atrás do jardim que encima o produzem um desusado trriiim, prolongado,
muito poucas vezes posta em prática. Na Campo de Santa Clara. Agarrou-me no de outros tempos...Ficou à porta e eu, aco-
verdade, sempre achei as histórias de anjos braço direito e começamos a subir. Sem metido de uma súbita pressa, que até aí não
e santos, como um folclore antigo, para demora, começou a falar, com uma voz sentira, deixei-o num súbito impulso...
explicar o Bem e o Mal a um povo, simples, quente, ao mesmo tempo forte e segura, Contudo, numa fracção de segundo apenas
do passado... profunda, que estava em dissonância com- – acreditará o leitor – olhei para trás para
Passou-se, no entanto, que certo dia ao pleta com o aspecto físico... ver o que lhe tinha acontecido. Verifiquei
sair do Hospital da Marinha, era uma tarde Enquanto subíamos quis saber coisas da atónito que já lá não estava. Voltei atrás e
de Junho quente, encontrei um cego que minha vida. O que fazia, quantos filhos toquei, novamente, na campaínha. Não
pedia ajuda. Tratava-se de um homem alto, tinha, o que fazia a mulher, de que coisas houve resposta. Só o silêncio e a quietude
velho, grisalho, de barba branca, mal gostava mais...Há medida que íamos falan- das coisas imperturbáveis. Reparei então
30 JANEIRO 2003 • REVISTA DA ARMADA