Page 104 - Revista da Armada
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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (5)
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enho, hoje, tranquili- por descobrir o modo de “dar a
zar os meus inquietos volta” ao que mais não era do
Vleitores: não se pense que uma personalidade exu-
que tenho a mais leve veleida- berante e um carácter vincada-
de de vir a substituir as riquís- mente folgazão. Talvez os que
simas e inspiradas “Histórias vierem, agora, a sair da Escola
da Botica” por estes paupér- Naval sejam muito mais “gin-
rimos e desinteressantes de- gões” do que é habitual, o que,
sabafos. Trata-se, tão somente, sendo excelente do ponto de
do modesto contributo deste vista da camaradagem, acaba
vosso camarada para que o por ser uma pena, pois retirará
nosso estimado Doc possa uma boa parte da riqueza das
tomar fôlego entre duas cró- relações humanas vividas den-
nicas e, em cada nova escri- tro das unidades.
ta, ressurgir revigorado e com Mas se, tradicionalmente, os
redobrado fulgor. De resto é, navais discípulos de Hipócra-
até, um modo de evidenciar tes se mostram desenraizados a
a beleza de tais narrações, bordo, existe um local onde se
ou não é verdade que uma sentem como “peixe na água”:
pedra preciosa se apresenta o Hospital. Aí são, na verdade,
com um brilho mais intenso reis e senhores e que remédio
quando colocada entre dois (passe o trocadilho!) temos nós
pedaços de carvão? se não entregarmo-nos como
O mais certo, aliás, é que os dóceis cordeirinhos nas suas
meus temas se esgotem muito mãos. Quantas vezes, então,
antes das “Histórias da Botica” descobrimos que a avis rara se
chegarem ao seu termo, mes- tornou uma prima donna que
mo tendo aquelas começado não podemos – nem ao de leve!
há muito mais tempo, pois não – melindrar, não vá, por pirraça,
possuo metade da vivência do descurar a nossa maleita (que é
bom Doc. De facto, confesso sempre a mais grave do Mun-
que ainda não tenho muitas do) ou, pior ainda, prescrever-
histórias para contar, apesar nos um tratamento de choque
das minhas músicas favoritas que nos faça, de uma vez por
já serem passadas na “Rádio Nostalgia” e de já Muito pouco imbuído do espírito de marinhei- todas, perder a vontade de ficarmos doentes (te-
termos, há muito, ultrapassado as datas supos- ro, o Doc típico sentia-se a bordo como planta nho alguns camaradas de Escola Naval que nunca
tamente retratadas nas séries de ficção científica desenvasada e a sua condição de avis rara, que mais sentiram a necessidade de pôr os pés numa
da minha infância. E não se trata apenas de uma o tornava frequentemente o centro das atenções, enfermaria ou num consultório depois de umas
questão de idade, factor que aqui até é pouco permitia folgar um pouco as costas dos cadetes e milagrosas injecções “cavalares”).
significativo, mas principalmente do facto de um dos aspirantes naquelas terríveis refeições tomadas E antes que alguns dos meus homenageados de
médico ter, por força do seu mister, uma expe- na Câmara. Presa fácil das praxativas brincadeiras hoje comecem a preparar os bisturis e os fórceps
riência humana muito mais rica do que a maior dos outros oficiais (claro que não vou revelar aqui para me receber calorosamente na minha próxima
parte das outras pessoas. as suas formas mais frequentes, pois não quero es- visita ao Hospital (vejam lá que nem tive a inteli-
E eis que todo este palavreado nos conduz tragar o prazer aos poucos que ainda venham a gência de inventar um pseudónimo de duas ou três
àquela figura tão típica que é o médico naval. ter tal privilégio), sofria tratos de polé às suas mãos letras que me protegesse a identidade e, por conse-
Correndo o risco de ser comparado àquela sim- até que, já ambientado após um longo e penoso guinte, a integridade física), seja-me também per-
pática senhora de noventa e tal anos que afirma- calvário, descobria, afinal, que estava a viver os mitido dizer que, felizmente, há por aqueles frios
va ainda ser do tempo em que uma consola de melhores momentos da sua vida, entregando-se, corredores muitos Docs dignos de tão carinhoso
videojogos custava apenas quinhentos mil réis então, a todo o tipo de excessos. Já a marinha- diminutivo. Em cada um deles encontramos, mais
na mercearia da esquina, aqui vos digo que, tam- gem via-o, não raro, como uma tábua de salva- do que um físico, um verdadeiro confidente (e que
bém eu, ainda sou do tempo em que havia mé- ção onde se agarrava para escapar, através da tão pachorra é precisa para aturar certos “fregueses”!)
dicos embarcados. Não é que os não haja agora, ambicionada “dispensa médica”, às labutas mais que não só se ocupa dos nossos males de corpo
mas ainda me lembro de quando qualquer navio pesadas. Tornado, finalmente e por mérito próprio, mas também, e principalmente, das nossas dores
de guerra, de corveta para cima, tinha direito, a membro de pleno direito da guarnição, era muitas de espírito. É dessa especialidade, ainda não incluí-
tempo inteiro, a um “Dôtor” só para si. Não é, vezes surpreendido a “limpar um cisco do olho” da – pelo menos assim o julgo – nos cursos de Me-
naturalmente, meu objectivo opinar sobre a ne- quando saía a prancha pela última vez. dicina, que as páginas desta Revista nos têm dado
cessidade ou inutilidade de tal luxo, que apenas Claro que também houve médicos que, desde tão eloquente testemunho.
foi possível em “tempo de vacas gordas”, mas a primeira hora, se revelaram verdadeiros lobos Infelizmente, ainda encontramos muitas reser-
é inegável que a presença de um médico, com do mar. Eu próprio, no meu primeiro estágio de vas em relação à competência – ou, simplesmen-
uma formação de base muito pouco militarista, embarque, apanhei um que era um verdadeiro te, ao empenho - dos médicos da nossa Marinha.
dá um outro colorido a qualquer guarnição. “terror”, embora, dali a pouco tempo, acabasse Ora, tal preconceito, além de ser totalmente in-
30 MARÇO 2004 U REVISTA DA ARMADA