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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (5)


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              enho, hoje, tranquili-                                                       por descobrir o modo de “dar a
              zar os meus inquietos                                                        volta” ao que mais não era do
         Vleitores: não se pense                                                           que uma personalidade exu-
         que tenho a mais leve veleida-                                                    berante e um carácter vincada-
         de de vir a substituir as riquís-                                                 mente folgazão. Talvez os que
         simas e inspiradas “Histórias                                                     vierem, agora, a sair da Escola
         da Botica” por estes paupér-                                                      Naval sejam muito mais “gin-
         rimos e desinteressantes de-                                                      gões” do que é habitual, o que,
         sabafos. Trata-se, tão somente,                                                   sendo excelente do ponto de
         do modesto contributo deste                                                       vista da camaradagem, acaba
         vosso camarada para que o                                                         por ser uma pena, pois retirará
         nosso estimado Doc possa                                                          uma boa parte da riqueza das
         tomar fôlego entre duas cró-                                                      relações humanas vividas den-
         nicas e, em cada nova escri-                                                      tro das unidades.
         ta, ressurgir revigorado e com                                                      Mas se, tradicionalmente, os
         redobrado fulgor. De resto é,                                                     navais discípulos de Hipócra-
         até, um modo de evidenciar                                                        tes se mostram desenraizados a
         a beleza de tais narrações,                                                       bordo, existe um local onde se
         ou não é verdade que uma                                                          sentem como “peixe na água”:
         pedra preciosa se apresenta                                                       o Hospital. Aí são, na verdade,
         com um brilho mais intenso                                                        reis e senhores e que remédio
         quando colocada entre dois                                                        (passe o trocadilho!) temos nós
         pedaços de carvão?                                                                se não entregarmo-nos como
           O mais certo, aliás, é que os                                                   dóceis cordeirinhos nas suas
         meus temas se esgotem muito                                                       mãos. Quantas vezes, então,
         antes das “Histórias da Botica”                                                   descobrimos que a avis rara se
         chegarem ao seu termo, mes-                                                       tornou uma prima donna que
         mo tendo aquelas começado                                                         não podemos – nem ao de leve!
         há muito mais tempo, pois não                                                     – melindrar, não vá, por pirraça,
         possuo metade da vivência do                                                      descurar a nossa maleita (que é
         bom Doc. De facto, confesso                                                       sempre a mais grave do Mun-
         que ainda não tenho muitas                                                        do) ou, pior ainda, prescrever-
         histórias para contar, apesar                                                     nos um tratamento de choque
         das minhas músicas favoritas                                                      que nos faça, de uma vez por
         já serem passadas na “Rádio Nostalgia” e de já   Muito pouco imbuído do espírito de marinhei-  todas, perder a vontade de ficarmos doentes (te-
         termos, há muito, ultrapassado as datas supos-  ro, o Doc típico sentia-se a bordo como planta  nho alguns camaradas de Escola Naval que nunca
         tamente retratadas nas séries de ficção científica  desenvasada e a sua condição de avis rara, que  mais sentiram a necessidade de pôr os pés numa
         da minha infância. E não se trata apenas de uma  o tornava frequentemente o centro das atenções,  enfermaria ou num consultório depois de umas
         questão de idade, factor que aqui até é pouco  permitia folgar um pouco as costas dos cadetes e  milagrosas injecções “cavalares”).
         significativo, mas principalmente do facto de um  dos aspirantes naquelas terríveis refeições tomadas   E antes que alguns dos meus homenageados de
         médico ter, por força do seu mister, uma expe-  na Câmara. Presa fácil das praxativas brincadeiras  hoje comecem a preparar os bisturis e os fórceps
         riência humana muito mais rica do que a maior  dos outros oficiais (claro que não vou revelar aqui  para me receber calorosamente na minha próxima
         parte das outras pessoas.          as suas formas mais frequentes, pois não quero es-  visita ao Hospital (vejam lá que nem tive a inteli-
           E eis que todo este palavreado nos conduz  tragar o prazer aos poucos que ainda venham a  gência de inventar um pseudónimo de duas ou três
         àquela figura tão típica que é o médico naval.  ter tal privilégio), sofria tratos de polé às suas mãos  letras que me protegesse a identidade e, por conse-
         Correndo o risco de ser comparado àquela sim-  até que, já ambientado após um longo e penoso  guinte, a integridade física), seja-me também per-
         pática senhora de noventa e tal anos que afirma-  calvário, descobria, afinal, que estava a viver os  mitido dizer que, felizmente, há por aqueles frios
         va ainda ser do tempo em que uma consola de  melhores momentos da sua vida, entregando-se,  corredores muitos Docs dignos de tão carinhoso
         videojogos custava apenas quinhentos mil réis  então, a todo o tipo de excessos. Já a marinha-  diminutivo. Em cada um deles encontramos, mais
         na mercearia da esquina, aqui vos digo que, tam-  gem via-o, não raro, como uma tábua de salva-  do que um físico, um verdadeiro confidente (e que
         bém eu, ainda sou do tempo em que havia mé-  ção onde se agarrava para escapar, através da tão  pachorra é precisa para aturar certos “fregueses”!)
         dicos embarcados. Não é que os não haja agora,  ambicionada “dispensa médica”, às labutas mais  que não só se ocupa dos nossos males de corpo
         mas ainda me lembro de quando qualquer navio  pesadas. Tornado, finalmente e por mérito próprio,  mas também, e principalmente, das nossas dores
         de guerra, de corveta para cima, tinha direito, a  membro de pleno direito da guarnição, era muitas  de espírito. É dessa especialidade, ainda não incluí-
         tempo inteiro, a um “Dôtor” só para si. Não é,  vezes surpreendido a “limpar um cisco do olho”  da – pelo menos assim o julgo – nos cursos de Me-
         naturalmente, meu objectivo opinar sobre a ne-  quando saía a prancha pela última vez.  dicina, que as páginas desta Revista nos têm dado
         cessidade ou inutilidade de tal luxo, que apenas   Claro que também houve médicos que, desde  tão eloquente testemunho.
         foi possível em “tempo de vacas gordas”, mas  a primeira hora, se revelaram verdadeiros lobos   Infelizmente, ainda encontramos muitas reser-
         é inegável que a presença de um médico, com  do mar. Eu próprio, no meu primeiro estágio de  vas em relação à competência – ou, simplesmen-
         uma formação de base muito pouco militarista,  embarque, apanhei um que era um verdadeiro  te, ao empenho - dos médicos da nossa Marinha.
         dá um outro colorido a qualquer guarnição.  “terror”, embora, dali a pouco tempo, acabasse  Ora, tal preconceito, além de ser totalmente in-

         30  MARÇO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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