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A MARINHA DE D. MANUEL (43)



           Política e Guerra no Norte de África
            Política e Guerra no Norte de África



              empre que se fala da presença portugue-  senvolvida, levando -me a pensar que a ideia  e a paz. Foi no seu reinado que se estabeleceu
              sa no Norte de África nos séculos XV e  nunca foi mais do que uma quimera que ser-  um sistema de protectorado português sobre
         SXVI, há assuntos que, inevitavelmente,  via a política interna e as relações com a San-  algumas zonas junto à costa, onde o comercio
         estão na primeira linha da discussão historio-  ta Sé, sendo usada nas conversações com os  era próspero e onde este clima de paz favorecia
         gráfica. O espírito da cruzada anti-muçulmana  reinos vizinhos como uma “ritual questão de  ambas as partes. D. Manuel herdou esta situa-
         que dava um carácter sagrado à guerra e um  princípio”. Quanto muito ela está na mente  ção, mas há um momento do seu reinado onde
         sentido purificador aos que nela participavam,  de Afonso V, entre o final dos anos cinquenta  tudo parece mudar e essas posições portugue-
         é um deles. Mas outro,                                                                sas – que, na sua maio-
         não menos frequente,                                                                  ria, pouco mais eram do
         é a apresentação das                                                                  que feitorias –  passam
         campanhas africanas e                                                                 a ser pontos fortificados
         o crescimento do impé-                                                                de onde se lançam per-
         rio oriental como duas                                                                manentes ataques às
         alternativas político-                                                                zonas circunvizinhas,
         -militares que tinham                                                                 criando um clima de
         dois partidos em Por-                                                                 guerra endémica. As
         tugal e que podem                                                                     guarnições viviam fe-
         clas sificar -se de forma                                                              chadas nas fortalezas,
         simples: de um lado os                                                                onde só eram abas-
         visionários do Oriente                                                                tecidos por mar, e de
         e do outro aqueles que                                                                onde lançavam as tais
         achavam que o com-                                                                    correrias em território
         bate aos in fiéis se fa-                                                              mouro que, natural-
         zia com menos esfor-                                                                  mente, rendiam lucros
         ço e mais eficácia aqui                                                                avultados a gente des-
         ao pé de casa, numa                                                                   temida e aventureira.
         perspectiva de alar-                                                                  Não consigo entender
         gamento do território                                                                 claramente se a súbita
         português até ao Nor-                                                                 construção de fortale-
         te de África, como uma                                                                zas junto à costa –  com
         sequência “natural” e directa do que tinham  e meados da década de setenta do século XV,  especial destaque para a região ocidental a sul
         sido as conquistas da primeira dinastia. Não  e, eventualmente, na de D. Sebastião, quando  de Azamor – corresponde a um política defi-
         há dúvida nenhuma que houve sempre quem  faz a aliança com um sultão de Fez deposto e  nida com um objectivo preciso, ou é apenas a
         interpretasse as guerras no Norte de África  exilado pelos xarifes do sul, avançando para a  continuidade bélica da anterior fase de comér-
         desta forma e é muito provável que assim  batalha de Alcácer Quibir na esperança de que  cio mais ou menos pacífico. O que me parece
         tenham pensado pessoas como D. João I, o  aquela aliança provisória  viesse acender uma  claro – e isso observa-se muito bem se olhar-
         infante D. Henrique e D. Afonso V, para falar  chama imperial.        mos para o que aconteceu no futuro – é que as
         apenas dos mais importantes. Recuperar os   Parece-me evidente que a presença portu-  zonas de influência portuguesa em Marrocos
         territórios cristãos africanos de antes do sécu-  guesa em Ceuta tem um objectivo estratégico  podem dividir-se em duas partes: uma a norte,
         lo VII e submeter os mouros ou empurrá -los  de domínio do Estreito de Gibraltar. Mesmo  dominada por Ceuta e Tânger (Alcácer Ceguer
         para o oriente de onde tinham vindo, seria um  que essa ideia não fosse clara à data da con-  tinha pouco valor económico e militar), que es-
         objectivo político-militar de castelhanos, arago-  quista, ela impôs-se na prática, e foi suporta-  tavam viradas para o mar e para o domínio
         neses e portugueses que, neste sentido, chega-  da por uma poderosa facção de comerciantes  do Estreito (que interessava ao comércio cris-
         ram a assinar tratados onde definiram os seus  que influenciavam a coroa, a ponto de não  tão em geral); outra mais para sul, onde foram
         espaços de influência, ou os territórios que a  terem permitido a entrega da cidade quando  sendo construídas fortalezas de grande pujan-
         cada um caberia por conquista. Esta ideia – que  os mouros o exigiram para resgate do infan-  ça (de que falaremos num próximo texto), cujo
         está, aliás, expressa muito claramente em mui-  te D. Fernando. Olho para as campanhas de  objec tivo me escapa verdadeiramente, se nessa
         tos documentos coevos – tem, quanto a mim,  Afonso V e vejo-as como uma sucessão de ope-  acção procurar algo mais do que a criação de
         um problema fundamental que dificulta a sua  rações que visam criar pontos de apoio para  simples centros para acções militares (em ter-
         aceitação sem reticências: para além de umas  o lançamento de algaras, à maneira medieval,  ra e no mar) que nunca conseguiram coorde-
         campanhas mais ou menos insípidas e circuns-  eventualmente com objectivos vagos de se tor-  nar-se verdadeiramente. Creio que D. Manuel
         tanciais, não encontro um esforço coerente e  narem em conquistas territoriais consistentes,  teve algumas dificuldades em conciliar as for-
         credível que possa entender-se como uma  que acabaram por se desvanecer quando o rei  ças vivas nacionais para desenvolver uma po-
         tentativa de conquista do reino marroquino.  virou os seus interesses para o reino de Caste-  lítica coerente em relação a Marrocos (apesar
         Quer dizer, as palavras ditas em solenes decla-  la, em 1476. D. João II tem uma política hábil:  de ainda ter lançado grandes operações, como
         rações de intenções, sempre muito elogiadas  usufruiu de alguns benefícios colhidos por seu  veremos), e viria a ser criticado por isso alguns
         pelos cronistas (a ideia de conquista do reino  pai – nomeadamente da paz celebrada com o  anos mais tarde, mas falaremos desse assunto
         de Fez foi assumida como um direito portu-  sultão de Fez –, ainda tentou construir uma  nos dois próximos números.
         guês, consagrado no Tratado das Alcáçovas,  fortaleza sobre o rio Lucos (o rio de Larache),           Z
         no de Tordesilhas e, em 1509, no de Sintra),  mas desistiu da empresa quando se viu ame-  J. Semedo de Matos
         não têm uma correspondência na prática de-  açado militarmente, preferindo a negociação           CFR FZ

         20  JANEIRO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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