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O que Alá permite
                               O que Alá permite


               a última semana de trabalho no  nesas e holandesa), aos bebés e, sobretudo,  meio eu e o Mr. Hassam, que explicava en-
               NATO Relief Hospital, instalado  a reforçar a minha campanha a favor da  tusiasticamente e numa profusão de gestos
         Nem Bagh-Paquistão para assistir as  amamentação, lançada desde o nascimen-  (provavelmente muito para além do que eu
         vítimas do terramoto, as Forças Armadas  to do primeiro bebé, perante a incompre-  tinha dito, como aliás acontecia frequente-
         holandesas resolveram enviar uma psicó-  ensível recusa das mães em amamentarem  mente nestas traduções simultâneas), os be-
         loga clínica para nos preparar para voltar-  os seus filhos.           nefícios para a mãe e para o bebé do acto de
         mos para casa.                                                        amamentar. Mostrava ele, agitando os braços
           Digo “nós” referindo-me à equipa mé-                                no ar, que o leite materno fazia o bebé mais
         dica, de enfermagem e paramédica que se                               forte, estava sempre disponível e à tempera-
         encontrava naquele campo de Cachemira                                 tura ideal, era económico e tinha a compo-
         há cerca de três meses e que, integrando                              sição nutricional certa.
         militares dos três ramos das FA e de cinco                              Acho que eles nunca traduziam a parte
         países diferentes (Holanda, República Che-                            em que eu dizia que a amamentação inten-
         ca, Reino Unido, França e Portugal), era a                            sificava a relação mãe-filho (foi-me dito que
         prova cabal de que um propósito militar                               as altas taxas de mortalidade infantil não in-
         humanitário nos une tão ou mais eficaz e                               centivavam este vínculo precoce) mas desta
         sinergisticamente que um inimigo comum                                vez eu não insisti senão na ideia de que as
         ou uma meta comunitária.                                              minhas pacientes eram livres de decidir acei-
           Ainda assim, e apesar de me ter sentido   Consulta com interprete paquistanesa.  tar ou recusar a oferta e de que o meu apoio
         plenamente integrada, não era propriamen-                             era incondicional.
         te a mim, que a Dra. Ellen, vinha explicar                              Fomo-nos todos embora e, passados mo-
         o efeito que tem em nós vermos membros                                mentos, voltei para saber da sua decisão.
         amputados todos os dias, enfrentarmos um                              Ambas tinham optado por não autorizar que
         Serviço de Urgências com doentes a mais                               os seus filhos fossem amamentados pela mãe
         e meios a menos ou passarmos a ter como                               holandesa argumentando que os seus mari-
         extravagância de sábado à noite ver um                                dos não concordavam. Tendo em conta que,
         filme repetido num écran de computador.                                naquele espaço de tempo, os maridos não
         Não era a mim, que ela queria dizer que as                            estavam presentes, para mim foi claro que
         famílias, que tinham feito árvores de Natal                           não lhes agradava a ideia de porem os seus
         na nossa ausência e tinham tentado pôr                                bebés ao peito duma desconhecida (embo-
         numa caixinha de correio uma parte delas   Promovendo a amamentação.  ra haja no Paquistão o conceito de amas de
         próprias, não iam conseguir compreender                               leite), não estavam ainda nada assimilados
         imediatamente o país pobre, fragilizado e                             os conhecimentos sobre aleitamento mater-
         muçulmano donde nós regressávamos.                                    no (as próprias mães foram sempre relutan-
           Mas era eu que tinha feito nascer dois be-                          tes em dar de mamar), não era verdade que
         bés naquela mesma semana e portanto, foi                              fossem os homens a impedir as esposas de
         a mim que a dra.Ellen veio contar como, ao                            amamentar (depois daquele “briefing”, o
         ouvir o choro dos “meus” recém-nascidos                               Mr. Hassam continuou empenhadamente a
         na tenda da enfermaria, o seu corpo reagiu                            ajudar-me nesta divulgação) e que eu ainda
         como costumava perante o choro da sua fi-                              demoraria muito tempo até compreender o
         lha de 6 meses que tinha ficado na Holan-                              comportamento destas jovens mães.
         da: produzindo leite, muito leite.                                      A Ellen, no seu jeito psicanalítico, avan-
           Para quem não saiba, esta é uma reacção                             çou a hipótese de que o prazer que advém
         fisiológica perfeitamente normal e desejável   Cuidados ao recém-nascido após o parto.  da amamentação seria considerado dema-
         mas, dando-se o caso do leite materno não                             siado libidinoso para que Alá (sobretudo O
         ser extraído, acumula-se de forma dolorosa,                           personificado pelas sogras) o permitisse.
         podendo inclusivamente originar infecções                               Eu, no entanto, que fui testemunha de tantas
         da mama difíceis de tratar.                                           regras contornadas por mulheres, muçulmanas
           Como é óbvio, pelo bom relacionamento                               fervorosas, cuja inteligência permitiu adapta-
         que existia entre camaradas e pela cumpli-                            rem-se aos constrangimentos dum hospital de
         cidade que se estabelece entre uma grávida                            campanha, acredito que a benevolência de Alá
         e a sua obstetra, foi a mim que coube a de-                           ultrapassa os mais rígidos códigos de compor-
         licada tarefa de auscultar as recém-mamãs                             tamento. Acredito que o desconhecimento e
         no sentido de deixarem os seus filhos serem                            as diferenças culturais não obstam à filantropia
         amamentados pela nossa psicóloga.                                     dos actos médicos ou militares. Acredito que as
           O meu hemisfério esquerdo dizia-me                                  missões que tiverem por base o desejo de coo-
         que bom que era eu ser médica para po-  Gabinete de Ginecologia/Obstetrícia no   peração, o respeito, o método e a perseverança
                                             NATO Relief Hospital, em Bagh.
         der compreender e apoiar a minha cole-                                hão -de levar-nos, individual e colectivamente,
         ga, que ainda bem que eu sabia mais de   O lado direito do meu cérebro, porém,  a bom porto. E à NATO, através de cada um de
         10 razões a favor do aleitamento materno,  lembrava-me a oração de S.Francisco:” Meu  nós, se for essa a sua determinação.
         que os rudimentos de urdu (língua oficial  Deus, dá-me força para mudar o que é pos-                   Z
         do Paquistão) que tinha aprendido me ha-  sível, paciência para aceitar o que não é e   2TEN MN Filipa Soares Albergaria
         viam de auxiliar perante o intérprete e que  inteligência para perceber a diferença”.  Interna de Ginecologia/Obstetrícia
         medicamente, se tivesse sucesso, estaria a   E de repente, vejo-me na enfermaria, com   Missão NATO – Pakistan Earthquake Relief Assistance
         prestar um bom serviço às mães (paquista-  as mulheres dum lado, a Ellen do outro e no        DEZ05/JAN06

         8  ABRIL 2006 U REVISTA DA ARMADA
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