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A MARINHA DE D. JOÃO III (11)



                O direito às Molucas: uma dúvida
                O direito às Molucas: uma dúvida

                                   sem solução à vista
                                   sem solução à vista


               o olharmos para o mapa portu-  e recorro às próprias informações (por vezes  presentações cartográficas mais importantes
               guês, de autor anónimo, datado de  menos notadas) do planisfério, para corrobo-  – que se estimava com valores que não eram,
         A1502 –  conhecido pela designação  rar esta minha opinião. Vejamos, por exem-  de todo, absurdos (pelo menos não eram su-
         de Cantino, pelas circunstâncias em que foi  plo, como a tal largura da África nos surge  ficientemente erróneos para comprometerem
         elaborado e levado para fora do país – não  tão próxima da realidade, apesar de que a  o raciocínio que pretendo desenvolver). Por
         podemos deixar de nos surpreender com  representação do Mediterrâneo permanece  essa razão, quando as navegações portugue-
         as características do traçado da África e da  encurtada e distorcida, de acordo com uma  sas chegaram a Malaca e, sobretudo, a Ban-
         parte ocidental do Oceano Índico, até à Pe-  tradição própria presente nos velhos portula-  da ou a Ternate, os pilotos e outros responsá-
         nínsula Indostânica. Na verdade, o conti-  nos anteriores à expansão portuguesa. Estou  veis portugueses com algum conhecimento
         nente africano, a despeito de uma pequena  em crer que o padrão ptolemaico permane-  de cosmografia e navegação não podem ter
         deformação na sua extensão leste-oeste, tem  ceu sempre como referência e corroboro esta  deixado de colocar a si próprios alguns pro-
         dimensões muito próximas da realidade e  opinião com o traçado das regiões adjacentes  blemas e de sentir alguma apreensão sobre se
         o mesmo pode dizer-se da distância que  (v.g. Golfo Pérsico) que permaneceram nos  não se estaria a entrar em zonas cuja posse e
         o separa da costa ocidental da Índia. Para  padrões clássicos até ulterior reconhecimen-  direito de exploração não poderia ser contes-
         um mapa que tinha sido concebido apenas  to que o desmentisse.        tada pelos castelhanos. Na figura, temos uma
         três anos depois da chegada de Vasco da   Quero com isto dizer que, em 1502, os  parte do Cantino, com os valores aproxima-
         Gama a Lisboa, pode dizer-se que revela  portugueses conheciam o valor da largura  dos, medidos em graus, entre o meridiano
         um conhecimento muito razoável das re-  da África e a distância da sua costa oriental  de Tordesilhas, a costa ocidental de África, o
         giões onde tinham navegado as primeiras  ao Malabar, partindo dos valores aponta-  cabo Guardafui e o cabo Comorim, perfazen-
         três esquadras que foram à Índia (Gama,  dos por Ptolomeu que se verificavam ser  do um total de 132º. Se lhe juntarmos cerca de
         Cabral e João da Nova).            muito próximos da realidade. Pelas suas  50º que separam o cabo Comorim das Molu-
           Dizem alguns historiadores que estas pri-  próprias viagens e através da estima da  cas, ficamos com 181º, ultrapassando o que
         meiras explorações marítimas demoliram por  navegação tiveram ideia de que o meri-  seriam os limites das viagens portuguesas.
         completo os clássicos monumentos do conhe-  diano de Tordesilhas, resultante do trata-  Se considerarmos que as medidas conheci-
         cimento geográfico, com especial relevo para  do assinado por D. João II com os reis cató-  das e registadas tinham muito pouco rigor (e
         o texto da Geografia de Cláudio Ptolomeu,  licos, em 1494, cruzava o Atlântico de norte  todos o sabiam) podemos ter a noção de que
         que merecia uma particular atenção desde  a sul, passando pela foz do rio Amazonas,  o direito de posse sobre as ilhas do cravo, da
         o início do século XV. Que mais não fosse, o  tal como está desenhado no Cantino e como  noz e do macis seriam um barril de pólvora,
         relato do sábio alexandrino tinha sido um pa-  viria a ser inclusivamente corroborado por  logo que os castelhanos conseguissem alcan-
         drão de saber erudito, de leitura obrigatória  uma bula papal de 1506 (Júlio II), sem qual-  çá-las, como aconteceu em 1522. Na minha
         e inspiração do sonho do homem renascen-  quer contestação castelhana. Seria, portanto,  opinião, esta muito razoável dúvida foi o pon-
         tista. As viagens iam desmentindo as infor-  natural que, com as viagens até Malaca e até  to de partida que sustentou o financiamento
         mações nele contidas, gerando uma aparen-  às ilhas das especiarias efectuadas na segunda  da expedição de Fernão de Magalhães e que
         te conflitualidade entre quem via e registava  década do século XVI, também tivessem uma  levantou o complexo problema da posse das
         as informações das terras visitadas, e quem  ideia aproximada da diferença de longitude  ilhas Molucas, cujos pormenores e desenvol-
         permanecia agarrado ao saber contido no li-  que separava o cabo Comorim e as Molucas.  vimentos continuaremos tratar.
         vro, dando a impressão de que se constituíam  A longitude não era uma coordenada fácil de             Z
         como que dois partidos inconciliáveis. É uma  determinar, mas é de crer – olhando para as   J. Semedo de Matos
         visão que não me parece totalmente correcta  posições relativas de diversos locais nas re-        CFR FZ

                                                                                               Planisfério português,
                                                                                               Anónimo (1502). Nele não
                                                                                               existem quaisquer esca-
                                                                                               las de latitude ou longi-
                                                                                               tude, mas tem marcados
                                                                                               o Equador e os dois Tró-
                                                                                               picos. Com base nessas
                                                                                               marcações, foi deduzi-
                                                                                               da uma escala grosseira
                                                                                               que permitiu imaginar as
                                                                                               distâncias indicadas em
                                                                                               graus, sem correr o risco
                                                                                               de grande erro de extra-
                                                                                               polação, tanto mais que
                                                                                               as medidas foram tiradas
                                                                                               fora da região Mediter-
                                                                                               rânica (onde a escala era
                                                                                               outra) e na zona que já ti-
                                                                                               nha sido reconhecida pe-
                                                                                               los portugueses à data da
                                                                                               elaboração do mapa.
                                                                                        REVISTA DA ARMADA U ABRIL 2006  11
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