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HISTÓRIAS DA BOTICA (45)



                  O anonimato do carinho…
                  O anonimato do carinho…



               a história destas histórias per-
               guntam-me frequentemente
         Nde onde me vem a inspira-
         ção, ou se as histórias são verdadei-
         ras? A resposta é fácil – a inspiração
         vem da vida e, sabe quem as lê, todas
         as histórias são verdadeiras…no meu
         coração. São por vezes tristes, porque
         a vida é assim…muitas vezes triste.
         Se falhei – e sei que falhei muito – foi
         porque deveria ter cantado melhor o
         antídoto do sofrimento…o Amor...
           Há, como sabemos todos, muitas
         formas de amor. Há o amor criado
         no jardim secreto que é coração da
         mulher. Há o amor dos pais pelos
         filhos e há o amor no sentido mais
         lato, de uns para os outros, que al-
         guns chamam carinho, outros preo-
         cupação e, outros ainda, cortesia…
         Esta história é um exemplo dessa
         cortesia, desse carinho…           a força de um homem adulto, para facilitar a   Nesse dia, no silêncio da noite algumas pa-
           Procurou-me, recentemente, um velho mi-  circulação de retorno, pois o preço pago pelo  lavras cresceram no meu (muito longo) “ca-
         litar, com múltiplos problemas cardiovascu-  bipedismo da espécie humana é que aumen-  derninho de anotações”. Tirei-as agora, para
         lares. Um dos mais díficies e incapacitantes  tou a distância entre os membros inferiores e  fazer esta história. Achei que era tempo de
         era uma úlcera de perna, de grandes dimen-  o coração, agravada pela gravidade, criando  recordar os milhares de actos anónimos de
         sões. Com uma evolução crónica e uma his-  uma fraqueza distinta dos outros animais,  carinho feitos por enfermeiros, a que já pre-
         tória de infecções repetidas, apresentava um  que andam de quatro. A massagem e o feroz  senciei e dos quais este é um bom paradigma.
         aspecto horrendo, com pús exposto numa  aperto da perna facilitavam a drenagem dos  Devo muito, eu também, a muitos enfermei-
         imensa cratera…Recomendei de imediato  tecidos. Estranhamente, poucas palavras tro-  ros. A eles devo a voz suave no ouvido, que
         um cirurgião vascular meu conhecido, com  cavam o paciente e o enfermeiro…e eu - que  me avisa (entre a vida e a morte de alguém)
         competência reconhecida. Para meu espan-  pretendo conhecer os sentimentos escusos da  – olhe a artéria está a babar... Já os vi traba-
         to, o paciente, com o respeito que os seus  alma – julguei, por momentos, que a esperan-  lhar no meio dos vómitos da hemorragia, da
         80 anos induzem, negou qualquer nova vi-  ça os unia: a esperança do doente, de que o  sujidade e do sofrimento de outros, com uma
         sita ao médico, a qualquer médico…estou  tratamento no final lhe aliviaria o sofrimento e  esforço poucas vezes explícito e menos vezes
         cansado dos médicos Doutor, só vim falar  o esperança do enfermeiro que, pela dedica-  louvado. Finalmente, devo-lhes uma lealdade
         consigo, porque me afirmaram que gosta de  ção demonstrada, apresentava uma fé quase  expressa em momentos em que alguns de mal
         falar e hoje, precisava simplesmente de me  sobrenatural, obsessiva, nos efeitos do seu tra-  me acusaram, e a que eles responderam num
         queixar a alguém… – afirmou.        tamento. E esta rotina continuou durante três  coro de vozes humildes, que, juntas, defini-
           No silêncio que se seguiu, olhamo-nos  longos meses, em que em silêncio o enfermei-  ram o peso da verdade…
         durante segundos, que me pareceram horas.  ro trabalhava e o paciente consentia.   Os enfermeiros têm muitas vezes uma
         Lembrei-me então de um velho conhecido   Não parecia, na verdade, haver limite para  proximidade com os doentes que os médi-
         enfermeiro na nossa Marinha – com o qual  o esforço do enfermeiro, que cumpria os seus  cos não conseguem ter, e fazem, ainda mais
         estive embarcado e em quem confiei, sem-  deveres e ainda achava tempo e disposição  vezes, a diferença entre o desconforto e a
         pre que necessário, nos enjoos e nos muitos  para este esforço extra. O paciente corres-  felicidade da alma de quem num hospital –
         conselhos e dificuldades, que, a bordo, par-  pondia suportando sem anestesia o labor  pelas sortes da vida – se encontrou. A bordo
         tilhámos. Achei que talvez ele pudesse fa-  do Sr Enfermeiro, cujos resultados mal vis-  transmitem, frequentemente, os anseios mais
         zer algo por aquele homem. Chamei-o. Ele  lumbrava, pois a posição de tratamento não  íntimos da guarnição, de um modo directo
         observou a perna e sussurrou – belo pincel  lhe facilitava a visão da úlcera. Fora isso es-  que permite, ao médico atento, um profundo
         me arranjou desta vez…com um semblante  tava sempre coberta. Tomava banho com um  conhecimento dos anseios dos seus pacien-
         verdadeiramente angustiado. Conclui com  plástico a cobrir a perna e acreditou…  tes…O seu trabalho é complementar aos dos
         um, vamos ver, enigmático. O paciente nada   Na mediada em que o tempo foi passan-  médicos, mas de primordial importância…É
         dizia. Só olhava o vazio da janela e foi um  do, também eu fiquei, de longe, curioso.  especialmente assim para aqueles em que
         dia chuvoso, esse dia…             Após os três meses, foi a vez do Sr. Enfer-  a ciência médica tem pouco para oferecer.
           Na verdade, todos os dias a partir daí, o Sr.  meiro me chamar. Queria que visse a per-  A ciência dos enfermeiros não se mede em
         Enfermeiro começou a fazer um tratamento  na. Fiquei agradavelmente surpreendido. A  artigos no último jornal médico americano,
         à perna daquele homem idoso. Com grande  ferida tinha fechado na quase totalidade e  mas, muito mais, numa capacidade de aju-
         dedicação era vê-lo cuidadosamente, durante  apresentava um rubor, saudável. O doente,  dar, de dar carinho, de amar…Será sempre
         cerca de uma hora, a limpar, a desinfectar, a  com um sorriso trocista, atirou-me com um  esta capacidade que os elevará como pes-
         aplicar pomadas e unguentos. Massajava e li-  – vê Doutor, bem lhe disse que estava farto  soas e torna insubstituível o carisma da pro-
         gava, após cada tratamento, a perna com toda  de médicos…             fissão que representam.

         30  ABRIL 2006 U REVISTA DA ARMADA
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