Page 140 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (45)
O anonimato do carinho…
O anonimato do carinho…
a história destas histórias per-
guntam-me frequentemente
Nde onde me vem a inspira-
ção, ou se as histórias são verdadei-
ras? A resposta é fácil – a inspiração
vem da vida e, sabe quem as lê, todas
as histórias são verdadeiras…no meu
coração. São por vezes tristes, porque
a vida é assim…muitas vezes triste.
Se falhei – e sei que falhei muito – foi
porque deveria ter cantado melhor o
antídoto do sofrimento…o Amor...
Há, como sabemos todos, muitas
formas de amor. Há o amor criado
no jardim secreto que é coração da
mulher. Há o amor dos pais pelos
filhos e há o amor no sentido mais
lato, de uns para os outros, que al-
guns chamam carinho, outros preo-
cupação e, outros ainda, cortesia…
Esta história é um exemplo dessa
cortesia, desse carinho… a força de um homem adulto, para facilitar a Nesse dia, no silêncio da noite algumas pa-
Procurou-me, recentemente, um velho mi- circulação de retorno, pois o preço pago pelo lavras cresceram no meu (muito longo) “ca-
litar, com múltiplos problemas cardiovascu- bipedismo da espécie humana é que aumen- derninho de anotações”. Tirei-as agora, para
lares. Um dos mais díficies e incapacitantes tou a distância entre os membros inferiores e fazer esta história. Achei que era tempo de
era uma úlcera de perna, de grandes dimen- o coração, agravada pela gravidade, criando recordar os milhares de actos anónimos de
sões. Com uma evolução crónica e uma his- uma fraqueza distinta dos outros animais, carinho feitos por enfermeiros, a que já pre-
tória de infecções repetidas, apresentava um que andam de quatro. A massagem e o feroz senciei e dos quais este é um bom paradigma.
aspecto horrendo, com pús exposto numa aperto da perna facilitavam a drenagem dos Devo muito, eu também, a muitos enfermei-
imensa cratera…Recomendei de imediato tecidos. Estranhamente, poucas palavras tro- ros. A eles devo a voz suave no ouvido, que
um cirurgião vascular meu conhecido, com cavam o paciente e o enfermeiro…e eu - que me avisa (entre a vida e a morte de alguém)
competência reconhecida. Para meu espan- pretendo conhecer os sentimentos escusos da – olhe a artéria está a babar... Já os vi traba-
to, o paciente, com o respeito que os seus alma – julguei, por momentos, que a esperan- lhar no meio dos vómitos da hemorragia, da
80 anos induzem, negou qualquer nova vi- ça os unia: a esperança do doente, de que o sujidade e do sofrimento de outros, com uma
sita ao médico, a qualquer médico…estou tratamento no final lhe aliviaria o sofrimento e esforço poucas vezes explícito e menos vezes
cansado dos médicos Doutor, só vim falar o esperança do enfermeiro que, pela dedica- louvado. Finalmente, devo-lhes uma lealdade
consigo, porque me afirmaram que gosta de ção demonstrada, apresentava uma fé quase expressa em momentos em que alguns de mal
falar e hoje, precisava simplesmente de me sobrenatural, obsessiva, nos efeitos do seu tra- me acusaram, e a que eles responderam num
queixar a alguém… – afirmou. tamento. E esta rotina continuou durante três coro de vozes humildes, que, juntas, defini-
No silêncio que se seguiu, olhamo-nos longos meses, em que em silêncio o enfermei- ram o peso da verdade…
durante segundos, que me pareceram horas. ro trabalhava e o paciente consentia. Os enfermeiros têm muitas vezes uma
Lembrei-me então de um velho conhecido Não parecia, na verdade, haver limite para proximidade com os doentes que os médi-
enfermeiro na nossa Marinha – com o qual o esforço do enfermeiro, que cumpria os seus cos não conseguem ter, e fazem, ainda mais
estive embarcado e em quem confiei, sem- deveres e ainda achava tempo e disposição vezes, a diferença entre o desconforto e a
pre que necessário, nos enjoos e nos muitos para este esforço extra. O paciente corres- felicidade da alma de quem num hospital –
conselhos e dificuldades, que, a bordo, par- pondia suportando sem anestesia o labor pelas sortes da vida – se encontrou. A bordo
tilhámos. Achei que talvez ele pudesse fa- do Sr Enfermeiro, cujos resultados mal vis- transmitem, frequentemente, os anseios mais
zer algo por aquele homem. Chamei-o. Ele lumbrava, pois a posição de tratamento não íntimos da guarnição, de um modo directo
observou a perna e sussurrou – belo pincel lhe facilitava a visão da úlcera. Fora isso es- que permite, ao médico atento, um profundo
me arranjou desta vez…com um semblante tava sempre coberta. Tomava banho com um conhecimento dos anseios dos seus pacien-
verdadeiramente angustiado. Conclui com plástico a cobrir a perna e acreditou… tes…O seu trabalho é complementar aos dos
um, vamos ver, enigmático. O paciente nada Na mediada em que o tempo foi passan- médicos, mas de primordial importância…É
dizia. Só olhava o vazio da janela e foi um do, também eu fiquei, de longe, curioso. especialmente assim para aqueles em que
dia chuvoso, esse dia… Após os três meses, foi a vez do Sr. Enfer- a ciência médica tem pouco para oferecer.
Na verdade, todos os dias a partir daí, o Sr. meiro me chamar. Queria que visse a per- A ciência dos enfermeiros não se mede em
Enfermeiro começou a fazer um tratamento na. Fiquei agradavelmente surpreendido. A artigos no último jornal médico americano,
à perna daquele homem idoso. Com grande ferida tinha fechado na quase totalidade e mas, muito mais, numa capacidade de aju-
dedicação era vê-lo cuidadosamente, durante apresentava um rubor, saudável. O doente, dar, de dar carinho, de amar…Será sempre
cerca de uma hora, a limpar, a desinfectar, a com um sorriso trocista, atirou-me com um esta capacidade que os elevará como pes-
aplicar pomadas e unguentos. Massajava e li- – vê Doutor, bem lhe disse que estava farto soas e torna insubstituível o carisma da pro-
gava, após cada tratamento, a perna com toda de médicos… fissão que representam.
30 ABRIL 2006 U REVISTA DA ARMADA