Page 137 - Revista da Armada
P. 137
E para espanto de todos nós, houve animado atrapalhado e mesmo por vezes empurrar, lite- Do cume do Tatamailau avistam-se as costas
bailarico, até às três da madrugada, ao som do ralmente, alguém que está prestes a desistir. O Norte e Sul de Timor, a ilha de Ataúro e várias ilhas
“Nós Pimba” do Emanuel, “Quero Cheirar teu importante é que todos cheguem ao fim. indonésias: Alor, Liran e Wetar, entre outras.
Bacalhau” do Quim Barreiros, e outras precio- De quando em vez faz-se uma breve para- Enquanto se contemplam e fotografam vezes
sidades do género. gem, esperando por alguém mais atrasado, para sem conta tamanhas belezas partilham-se os
Com a música em altos berros, a uma escassa que o grupo se mantenha junto. Psicologica- mimos que cada um levou. O termos com café
centena de metros, é claro que não consegui- mente é importante esta proximidade de todos de Timor é o mais requisitado, mas ninguém se
mos pregar olho. E quando a música acabou tí- os elementos, dando força ao conjunto. nega a uma bolacha ou um biscoito caseiro.
nhamos acabado de nos levantar, prontos para À medida que nos aproximamos do topo, co- Repleto o espírito e retemperado o corpo, é
a verdadeira aventura. meçam a raiar os primeiros alvores e então, nos tempo de dar início à descida, que o frio já faz sen-
Após um frugal pequeno almoço – não é acon- derradeiros quinze minutos, os que ainda têm tir os seus efeitos, nas pontas dos dedos das mãos
selhável levar o estômago muito cheio – voltamos forças para isso, estugam o passo para não per- e pés, que começam a ficar entorpecidos.
a ocupar os nossos lugares nas viaturas e roda- derem pitada do espectáculo que se antecipa. Bem nos tinham avisado que a descida era
mos durante mais meia hora, por vezes tendo de A primeira a chegar ao cume do Tatamailau mais perigosa que a subida. Agora, à luz do
recorrer à tracção integral, até atingirmos a base foi uma professora portuguesa, imediatamente dia, tomamos consciência dos estreitos e ín-
da montanha, um planalto onde as viatu- gremes locais por onde tínhamos passa-
ras podem ficar em segurança e a partir do do, com precipícios de dezenas e cen-
qual já só é possível progredir a pé. tenas de metros ali mesmo, à espera da
Faltam cerca de 800 metros, na vertical, menor distracção. Alguns elementos do
para atingirmos o cume, mas isso significa grupo escorregaram e caíram, nas zonas
uma caminhada de oito quilómetros ao de pedra solta, alguns mais de uma vez,
longo do estreito trilho que serpenteia pela felizmente sem consequências de maior,
encosta da montanha, a serem percorridos para além do susto, do orgulho ferido e da
em cerca de duas horas e meia. roupa empoeirada.
Conta-nos o nosso guia que este trilho, Recentemente, um elemento de outro
que na maior parte do seu percurso tem grupo de portugueses que fez a subida,
dois metros de largo, foi escavado à mão, teve menos sorte e escorregou pela ravi-
com pás e picaretas, de empreitada, por na abaixo, felizmente sem consequências
cerca de 5000 jovens mobilizados pela graves, tendo a queda sido sustida por al-
Igreja Católica, para que a população pu- gumas arvores.
desse ir lá acima, onde se encontra a es- À medida que se vai descendo aprende-
tátua de Nossa Senhora, rezar e assistir à cele- apelidada de “cabrinha”, pela agilidade e li- se a melhor técnica para evitar escorregadelas;
bração da missa. geireza com que galgou os derradeiros metros nas curvas e zonas de pedra solta, colocam-se
O principal segredo na subida, como nos ad- da subida que culminam numa escadaria que os pés de lado e dão-se passinhos pequenos. Por
verte o Sr. Alexandre, é conseguir manter uma leva ao patamar onde se encontra a estátua de vezes é mesmo aconselhável ampararmo-nos às
marcha lenta mas regular. O ar é já bastante ra- Nossa Senhora. paredes da montanha com as mãos. Este exer-
refeito a esta altitude e, como comprovaríamos Atingido o objectivo e enquanto ainda esta- cício faz trabalhar grupos musculares de uma
pessoalmente passados apenas dez minutos, a mos quentes, é altura de tirar a roupa interior, forma a que normalmente não estão habituados
respiração torna-se difícil e tivemos que reduzir molhada da transpiração e vestir roupas secas e e isso vai-se reflectir nas dores que ocorrerão
a marcha para que o nosso organismo se pudes- mais quentes porque o frio, agravado pelo vento durante os próximos dias.
se adaptar aos novos factores ambientais. cortante, não tardará a fazer-se sentir. É com grande satisfação e algum alívio que se
Outro aspecto importante a considerar é o ves- Alguém que tinha um termómetro incor- chega ao planalto onde se deixaram as viaturas.
tuário e calçado mais adequados. Aconselha-se porado no relógio, mediu seis graus de tem- As dificuldades foram vencidas.
botas de montanha e roupas quentes e confortá- peratura, mas havia quem se lembrasse de ter A temperatura amena, o Sol aconchegante e o
veis, sem esquecer um par de luvas de lã. apanhado apenas três. O pior de tudo era o cansaço convidam a esterdermo-nos na relva e
Àquela altitude e às três horas da madrugada, vento, forte e agreste, fazendo com que o frio recuperarmos do grande esforço despendido.
sente-se frio e a tendência é para nos agasalhar- se entranhasse até aos ossos daqueles que, Terminada a meia hora de merecido repou-
mos. Mas à medida que progredimos, o calor incautos, não tinham dado o devido valor às so, embarcamos nas viaturas e regressamos à
devido ao esforço faz-se sentir e vamos tirando recomendações dos veteranos para irem bem estalagem de Hato Builico, onde nos espera um
camisolas que vão para a mochila, onde tam- preparados para o frio. Mas quem acredita nis- retemperador almoço, uma vez mais preparado
bém transportamos água, que vamos consumin- so, quando se vive em Díli quase sempre aci- pela simpática família do Sr. Alexandre. Conclu-
do regularmente e bolachas, com que retempe- ma dos trinta graus? ído o repasto, é tempo de regressar, que ainda
raremos forças lá em cima. Mas tudo se esquece quando o espectáculo temos muita estrada pela frente.
A subida faz-se a passo de tartaruga, lenta mas do nascer do Sol começa. O azul do horizon- É Domingo e portanto dia de feira em Maubis-
segura, com o trilho iluminado pela luz das lan- te, para Leste, começa a tingir-se de vermelho se. Aproveitamos para uma pausa na condução e
ternas de pilha, entre conversas esporádicas e e laranja, com os contornos das montanhas a dar algum exercício às pernas entorpecidas. Os
períodos de maior concentração no trilho, nos definirem-se claramente. É um espectáculo su- trabalhos em prata, pulseiras e adornos de cabe-
locais onde é mais estreito e escorregadio devi- blime! O astro rei surge, grandioso, e elevando- ça tradicionais (meias-luas), atraem a curiosidade
do á presença de pedra solta, com o precipício se num movimento ao retardador, perfeitamente e aproveita-se o facto de serem mais baratos que
a espreitar ao lado e onde um pé em falso po- perceptível ao olho humano. A forte luz ilumina em Díli. A prata é obtida pela fusão das antigas
deria significar uma queda de muitas dezenas as montanhas em nosso redor, projectando as moedas (peso mexicano), saqueadas da caixa for-
ou centenas de metros. sombras de umas sobre as outras, num efeito te do banco na sequência da rendição dos japo-
Num grupo heterogéneo como o nosso, cons- espectacular e inesperado. São vinte minutos neses no final da Segunda Guerra Mundial.
tituído por pessoas com idades e preparação fí- de verdadeira contemplação. De volta à estrada, faz-se o caminho de re-
sica muito diversa, é natural que alguns sintam Para o lado do Sol nascente observa-se o gresso a Díli com o cansaço a fazer-se sentir, tra-
maiores dificuldades. Aí o espírito de entre aju- monte Matebian que, diz quem sabe, apesar duzido nos longos silêncios adormecidos.
da esteve sempre presente, desde o estender a de ser menos elevado que o Ramelau, (2400 Z
mão e puxar o companheiro nos locais mais metros), é mais difícil de subir. Fazem-se planos José A. Ruivo
íngremes até levar a mochila do parceiro mais para um futuro ataque a esse pico. CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U ABRIL 2006 27