Page 136 - Revista da Armada
P. 136

CRÓNICAS DE TIMOR

                             Subida ao Tatamailau
                             Subida ao Tatamailau

             artimos de Díli pelas 10 horas da manhã  tas e em Timor existe o mau hábito de condu-  sionante a quantidade delas que, em poucos
             de um Sábado do mês de Outubro. Esta-  zir pelo meio da estrada. Não poucas vezes o  minutos se juntam à nossa volta, surgindo do
         Pmos no final da época seca. Em Novembro  choque é evitado in extremis. Felizmente em  nada, como que por milagre. O jeep arranca
         começarão as chuvas e já não será aconselhável  Timor, também na condução, ninguém pare-  cautelosamente e ainda se vêm ao longe miú-
         fazer a escalada do Tatamailau, o pico mais alto  ce ter pressa.      dos a correrem, descalços, na nossa direcção,
         da montanha do Ramelau. Com os seus 2996   Maubisse tem um clima ameno, muito mais  na esperança de chegarem a tempo de ganha-
         metros de altitude, era o ponto mais alto de Por-  agradável do que Díli. A sua célebre pousada,  rem o seu doce. É curioso verificar que, de uma
         tugal, como se aprendia na escola, no tempo dos  recuperada por uma empresa portuguesa, é a  mão cheia de rebuçados, cada miúdo tira ape-
         portugueses, como nos esclareceria mais tarde,  segunda melhor do país, apenas suplantada  nas um, para que todos tirem, numa forma na-
         em Hato Builico, o Sr. Alexandre, um                                          tural de partilha.
         professor timorense e Director Escolar                                         Chegamos ao destino, programa-
         do Distrito de Ainaro.                                                        do para esse dia, caía já o crepúsculo
           Confortavelmente instalados em                                              que, nestas latitudes, é de muito curta
         duas viaturas todo o terreno, toma-                                           duração. Hato Builico é a última po-
         mos a estrada de Lahane, que con-                                             voação que se encontra antes do Ra-
         duz a Aileu. À medida que vamos su-                                           melau. É formada por um conjunto
         bindo a encosta, o ar vai refrescando,                                        de casas dispersas, com um núcleo
         deixando para trás o calor sufocante                                          central disposto ao redor de um ter-
         da capital.                                                                   reiro do tamanho de um campo de
           Em Lahane, a meio da encosta,                                               futebol. Apesar da sua pequena di-
         situa-se o antigo Palácio do Gover-                                           mensão dispõe de uma estalagem,
         nador, actualmente a ser recupera-                                            importante base de apoio para os que
         do pela Câmara Municipal de Lis-                                              pretendem escalar o Tatamailau.
         boa, e que se destina a ser a residência oficial  pela de Baucau. Construída no alto de uma co-  Por dez dólares americanos temos direito a
         do Presidente da República Democrática de  lina, goza de uma localização privilegiada, com  uma cama, em quarto duplo, ao jantar e pe-
         Timor Leste.                       magníficas vistas sobre as montanhas em redor.  queno almoço, confeccionados pela mulher e
           A sua localização não foi escolhida ao acaso,  Mas nós apenas a observamos à distância já que  filhas do gerente. A casa de banho é colectiva,
         num tempo em que nem se sonhava o que era  temos ainda muito caminho a percorrer e as di-  no sistema de sanita turca e banho de pucari-
         o ar condicionado. O ar é bem mais fresco e  ficuldades apenas agora vão começar.  nha, segundo o hábito indonésio. Não há ener-
         há muito menos mosquitos. A partir daqui, po-  Alguns quilómetros depois de Maubisse dei-  gia eléctrica na estalagem nem na povoação,
         demos desligar o ar condicionado das viaturas  xamos a estrada alcatroada que leva a Ainaro e,  por isso o jantar é servido à luz de candeeiros a
         e abrir as janelas.                virando à direita, a seguir à povoação de Lauhi-  petróleo e, para iluminar os quartos, são distri-
           Continuamos a subir, a estrada serpenteando  li, tomamos a estrada em terra batida que con-  buídas velas aos hóspedes.
         ao longo da íngreme encosta, com a cidade de  duz a Hato Builico. A partir daqui, a velocidade   Contam-nos que Hato Builico já teve ener-
         Dili sempre visível lá em baixo. São trezentas e  de marcha tem de ser drasticamente reduzida.  gia eléctrica, durante cerca de um ano. Os mi-
         muitas curvas até Aileu, disse alguém que já teve  O piso de terra e pedra solta já teve melhores  litares japoneses que por lá estiveram durante a
         a paciência de as contar. Em cada mil metros de  dias. As chuvas e a falta de manutenção regular  missão da PKF, deixaram-lhes um gerador e 50
         alcatrão, falta uma fatia de dez ou vinte, talhada  deixaram as suas marcas e, a cada curva, é em  mil litros de gasóleo. Terminado o combustível,
         pelas torrentes de água das chuvas da monção  primeira velocidade que se ultrapassam os bura-  não mais o gerador voltou a funcionar, e a po-
         que, desgovernadas e não encontrando talude  cos, felizmente ainda sem água, pudendo ver-se  voação regressou ao ritmo da luz solar, que essa
         por onde escoar, arrancam o alcatrão, arrastan-  a sua dimensão. O condutor não pode desviar a  não se esgota, nem está dependente da vontade
         do-o à sua frente, qual máquina escavadora.  atenção da estrada nem por um segundo.  dos governos.
           Em Aileu paramos para visitar o monumento   No entanto, para os passageiros, a paisagem   O Sr. Alexandre, também Gerente da esta-
         dedicado aos portugueses “Massacrados de Ai-  que se desenrola à nossa volta é de rara beleza.  lagem, acompanhado por um dos filhos mais
         leu”. Do conjunto fazem parte 10 sepulturas, que  Altas encostas e vales profundos, aqui e ali pon-  novos, será também o nosso guia, na subida
         guardam os restos mortais de militares e civis que  teados de uma habitação tradicional, perdida no  ao pico mais alto de Timor Leste. Conta já com
         se encontravam refugiados no posto quando do  meio do nada, levando-nos a pensar como é pos-  mais de duas dúzias de escaladas no currículo e
         ataque dos “Colunas Negras”, milícias a mando  sível alguém viver ali, naquele fim de mundo.  os seus conhecimentos e conselhos revelaram-
         das tropas japonesas que invadiram o território   De quando em vez cruzamo-nos com ha-  se fundamentais para o êxito da aventura.
         durante a 2.ª Guerra Mundial e que tanta destrui-  bitantes locais, a maior parte a pé, mas um ou   Antes de recolhermos aos quartos, ainda va-
         ção e morte causaram entre timorenses e portu-  outro conduzindo os pequenos cavalos timoren-  mos ao alpendre da estalagem lanças um último
         gueses. Em 1999 a história repetir-se-ia, desta feita  ses, que mais parecem poneis, o cavaleiro com  olhar ao magnífico céu nocturno de Timor-Leste,
         com as milícias a mando das tropas indonésias.  os pés quase a arrastar pelo chão. Os homens,  na busca de uma estrela guia que nos conduza
         O monumento, votado ao abandono durante a  com a lipa (pano tradicional), enrolada à volta  ao destino final.
         ocupação indonésia, foi restaurado em 2002 pela  da cintura e a inseparável catana na mão, ins-  Mas a grande surpresa que nos esperava em
         engenharia militar portuguesa.     trumento para todos os trabalhos. As mulheres,  Hato Builico ainda estava para acontecer.
           A temperatura, em Aileu, é bem mais agra-  correspondem sorrindo ao nosso aceno, deixan-  Nesse dia tinha decorrido na povoação uma
         dável, e contam os habitantes locais que antes  do ver as gengivas, de um vermelho vivo que  acção de campanha política por parte de um
         costumava fazer muito frio.        impressiona, provocado pelo mascar constante  dos partidos da oposição. Quando chegamos,
           Continuamos na direcção de Maubisse, sen-  da mistela de tabaco, cal e folha de betle.  por volta das 19 horas, já tinha terminado a ac-
         tindo o fresco da montanha a entrar pelas jane-  E quando por vezes paramos junto de um gru-  ção política, tendo-se dado início pouco depois
         las do jeep. Nas curvas apertadas é boa regra  po de duas ou três crianças, para lhes darmos  à parte festiva e de convívio, qual campanha
         usar e abusar da buzina. As estradas são estrei-  os rebuçados levados de propósito, é impres-  eleitoral em terras de Portugal.

         26  ABRIL 2006 U REVISTA DA ARMADA
   131   132   133   134   135   136   137   138   139   140   141