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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (16)



                        Atenção, guarnição...
                        Atenção, guarnição...



             mbora não faça parte dos sistemas de   Já a sua correcta utilização tem muito que  que nem mesmo a existência destas direc-
             combate ou de navegação de um na-  se lhe diga! É bem verdade que não existe  tivas nos impede, por vezes, de ouvir bar-
         Evio e, como tal, não seja considerado  uniformidade de procedimentos entre as vá-  baridades capazes de fazer arrepiar as me-
         um aparelho vital, o Equipamento Transmis-  rias unidades – a começar pela alocução de  lenas do mais calvo! Na verdade sucedem
         sor de Ordens – ou, simplesmente, E.T.O.  advertência, que vai desde o chamamento  tão frequentemente que um dia destes ainda
         – é, talvez, a “ferramenta” mais preciosa de  completo, com indicação do nome ou de-  vemos a designação oficial do E.T.O. mudar
         que o Comando dispõe para gerir o serviço  signação abreviada do navio e especifica-  para “Elemento Transformador de Ordens”,
         interno de bordo. Com meia dúzia de alti-  ção da categoria hierárquica a quem o aviso  “Equipamento Torturador de Ouvidos” (e
         falantes estrategicamente distribuídos e um  se destina, passando pelo mais vulgarizado  esta é capaz de “pegar” com facilidade,
         ou dois microfones colocados em pontos-  “Atenção, Guarnição…”, até ao mais lacó-  independentemente da operação ser mais
         -chave (normalmente nos centros de deci-  nico “Guarnição…”, isto sem falar daqueles  ou menos correcta, tantas são as vezes em
         são e postos de controlo) ficam os apitos e  operadores que, sem qualquer cerimónia ou  que, de forma brutal, interrompe os nossos
         toques de clarim da Ordenança relegados  compasso de espera, vão directos ao assun-  precários períodos de repouso) ou mesmo
         exclusivamente para ocasiões de puro ceri-  to... Existem, depois, outros preciosismos,  “Emissor de Trapalhadas Ocasionais”.
         monial marítimo. Tem, ainda, três funciona-  que variam de local para local, como, por   Uma das “escorregadelas” que me ficou
         lidades que a estes últimos estão vedadas:  exemplo, a proibição de mencionar as pa-  na memória não se deveu a incompetência
         a transmissão de instruções detalhadas em  lavras “mesmo” ou “mesma”, que julgo ter  do operador, mas sim à dificuldade que este
         linguagem clara, a chamada individualiza-  tido origem numa monumental calinada  sentiu no emprego de vocabulário recente-
         da de pessoal (imagine-se o pesadelo de ter  que, em tempos, terá relacionado o apelido  mente introduzido. Estávamos no início da
         de se criar – e memorizar! – um toque de  de um oficial com uma parte do navio iden-  década de 1990 e a Marinha sofria um pe-
         apito para cada elemento da guarnição!)  ticamente designada (e este hipotético epi-  queno “choque tecnológico” com a transi-
         e, por fim, a possibilidade do Comandante  sódio talvez mereça uma investigação mais  ção da artilharia “pura” para os sistemas de
         falar directamente aos seus subordinados,  profunda, não excluindo a possibilidade de  armas guiadas vulgarmente designadas por
         mesmo com o navio a navegar e o pessoal  figurar destacado numa próxima crónica…  mísseis. Sucedeu, então, durante um exercí-
         espaçado pelos diversos postos. Então na  Mas onde é que nós íamos? Estávamos a fa-  cio, o Oficial de Quarto à Ponte da “Vasco
         chamada “organização para a acção”, seja  lar de procedimentos, não é verdade?). Pro-  da Gama” mandar o Cabo de Quarto fazer
         ela de combate, manobras, vistoria ou limi-  vavelmente já se justificava a elaboração  o aviso de que o lançador do Seasparrow
         tação de avarias, ficamos como peixe fora  de uma publicação naval exclusivamente  (o nosso míssil antiaéreo) se iria movimen-
         de água se por algum motivo fortuito nos  dedicada à operação do E.T.O.. Enquanto  tar. Ora aquela praça, um cabo de mano-
         virmos privados deste precioso aliado. Mes-  essa “bíblia do operador” não sai, vamos  bra bastante antigo que nunca ouvira falar
         mo num navio pequeno faz muita falta, e eu  vivendo com as instruções escritas promul-  em semelhante “bicho”, lá terá solicitado
         que o diga, pois ainda tenho bem presente  gadas pelos diversos comandos – quando  ao oficial para repetir a palavra, mas ten-
         uma comissão de embarque em que me vi  existem! -, de acordo com o bom senso de  do, provavelmente, ficado absolutamente
         muitas vezes obrigado a andar aos berros  cada um e com a tradição marinheira que,  na mesma e não sendo do seu feitio ques-
         pelos corredores!                  decididamente, já não é o que era. Claro  tionar as ordens recebidas, lá se dirigiu ao
                                                                                            microfone e fez o melhor
                                                                                            que sabia. Foi assim que,
                                                                                            no sossego do meu cama-
                                                                                            rote, me chegou aos ouvi-
                                                                                            dos o seguinte aviso:
                                                                                             - Atenção, guarnição…
                                                                                            O lançador do Cisterno vai
                                                                                            ser movimentado.
                                                                                             Ainda com o microfone
                                                                                            ligado, ouvi um ruído de
                                                                                            fundo de grande vozearia
                                                                                            e risos abafados. Seguiu-
                                                                                            -se um “clic!” surdo, um
                                                                                            breve período de silêncio
                                                                                            e, finalmente, a esperada
                                                                                            rectificação:
                                                                                             - Guarnição… Corre c-
                                                                                            ção ao aviso anterior: o Sis-
                                                                                            pêro vai ser movimentado.
                                                                                            Repito: o Sispêro.
                                                                                             Desta vez nem ouvi ruí-
                                                                                            do de fundo, pois tive a
                                                                                            sensação de que todo o
                                                                                            navio estremecia com as
                                                                                            gargalhadas do pessoal -
                                                                                            as minhas incluídas. Ga-

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