Page 176 - Revista da Armada
P. 176
DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (16)
Atenção, guarnição...
Atenção, guarnição...
mbora não faça parte dos sistemas de Já a sua correcta utilização tem muito que que nem mesmo a existência destas direc-
combate ou de navegação de um na- se lhe diga! É bem verdade que não existe tivas nos impede, por vezes, de ouvir bar-
Evio e, como tal, não seja considerado uniformidade de procedimentos entre as vá- baridades capazes de fazer arrepiar as me-
um aparelho vital, o Equipamento Transmis- rias unidades – a começar pela alocução de lenas do mais calvo! Na verdade sucedem
sor de Ordens – ou, simplesmente, E.T.O. advertência, que vai desde o chamamento tão frequentemente que um dia destes ainda
– é, talvez, a “ferramenta” mais preciosa de completo, com indicação do nome ou de- vemos a designação oficial do E.T.O. mudar
que o Comando dispõe para gerir o serviço signação abreviada do navio e especifica- para “Elemento Transformador de Ordens”,
interno de bordo. Com meia dúzia de alti- ção da categoria hierárquica a quem o aviso “Equipamento Torturador de Ouvidos” (e
falantes estrategicamente distribuídos e um se destina, passando pelo mais vulgarizado esta é capaz de “pegar” com facilidade,
ou dois microfones colocados em pontos- “Atenção, Guarnição…”, até ao mais lacó- independentemente da operação ser mais
-chave (normalmente nos centros de deci- nico “Guarnição…”, isto sem falar daqueles ou menos correcta, tantas são as vezes em
são e postos de controlo) ficam os apitos e operadores que, sem qualquer cerimónia ou que, de forma brutal, interrompe os nossos
toques de clarim da Ordenança relegados compasso de espera, vão directos ao assun- precários períodos de repouso) ou mesmo
exclusivamente para ocasiões de puro ceri- to... Existem, depois, outros preciosismos, “Emissor de Trapalhadas Ocasionais”.
monial marítimo. Tem, ainda, três funciona- que variam de local para local, como, por Uma das “escorregadelas” que me ficou
lidades que a estes últimos estão vedadas: exemplo, a proibição de mencionar as pa- na memória não se deveu a incompetência
a transmissão de instruções detalhadas em lavras “mesmo” ou “mesma”, que julgo ter do operador, mas sim à dificuldade que este
linguagem clara, a chamada individualiza- tido origem numa monumental calinada sentiu no emprego de vocabulário recente-
da de pessoal (imagine-se o pesadelo de ter que, em tempos, terá relacionado o apelido mente introduzido. Estávamos no início da
de se criar – e memorizar! – um toque de de um oficial com uma parte do navio iden- década de 1990 e a Marinha sofria um pe-
apito para cada elemento da guarnição!) ticamente designada (e este hipotético epi- queno “choque tecnológico” com a transi-
e, por fim, a possibilidade do Comandante sódio talvez mereça uma investigação mais ção da artilharia “pura” para os sistemas de
falar directamente aos seus subordinados, profunda, não excluindo a possibilidade de armas guiadas vulgarmente designadas por
mesmo com o navio a navegar e o pessoal figurar destacado numa próxima crónica… mísseis. Sucedeu, então, durante um exercí-
espaçado pelos diversos postos. Então na Mas onde é que nós íamos? Estávamos a fa- cio, o Oficial de Quarto à Ponte da “Vasco
chamada “organização para a acção”, seja lar de procedimentos, não é verdade?). Pro- da Gama” mandar o Cabo de Quarto fazer
ela de combate, manobras, vistoria ou limi- vavelmente já se justificava a elaboração o aviso de que o lançador do Seasparrow
tação de avarias, ficamos como peixe fora de uma publicação naval exclusivamente (o nosso míssil antiaéreo) se iria movimen-
de água se por algum motivo fortuito nos dedicada à operação do E.T.O.. Enquanto tar. Ora aquela praça, um cabo de mano-
virmos privados deste precioso aliado. Mes- essa “bíblia do operador” não sai, vamos bra bastante antigo que nunca ouvira falar
mo num navio pequeno faz muita falta, e eu vivendo com as instruções escritas promul- em semelhante “bicho”, lá terá solicitado
que o diga, pois ainda tenho bem presente gadas pelos diversos comandos – quando ao oficial para repetir a palavra, mas ten-
uma comissão de embarque em que me vi existem! -, de acordo com o bom senso de do, provavelmente, ficado absolutamente
muitas vezes obrigado a andar aos berros cada um e com a tradição marinheira que, na mesma e não sendo do seu feitio ques-
pelos corredores! decididamente, já não é o que era. Claro tionar as ordens recebidas, lá se dirigiu ao
microfone e fez o melhor
que sabia. Foi assim que,
no sossego do meu cama-
rote, me chegou aos ouvi-
dos o seguinte aviso:
- Atenção, guarnição…
O lançador do Cisterno vai
ser movimentado.
Ainda com o microfone
ligado, ouvi um ruído de
fundo de grande vozearia
e risos abafados. Seguiu-
-se um “clic!” surdo, um
breve período de silêncio
e, finalmente, a esperada
rectificação:
- Guarnição… Corre c-
ção ao aviso anterior: o Sis-
pêro vai ser movimentado.
Repito: o Sispêro.
Desta vez nem ouvi ruí-
do de fundo, pois tive a
sensação de que todo o
navio estremecia com as
gargalhadas do pessoal -
as minhas incluídas. Ga-
30 MAIO 2006 U REVISTA DA ARMADA