Page 224 - Revista da Armada
P. 224

VALORES, IDENTIDADE E MEMÓRIA                                                                 4


            Coragem, Abnegação e Humanidade


         É
             na orla marítima que os naufrágios mais impressionam, pelo  dessa sensibilidade face à situação figurada. Para quem escreve estas
             dramatismo das situações daqueles que se procura salvar e  linhas o quadro desenvolve-se em torno das três ideias fundamentais,
             pela coragem, abnegação e humanidade dos que prestam a  que consubstanciam os traços de carácter de todos aqueles que se de-
         eles socorro.                                        dicam ao salvamento a náufragos: a coragem, a abnegação e a huma-
           Os grandes heróis do salvamento de náufragos foram consagra-  nidade. Porém, estas ideias não surgem desconexas. Derivam de um
         dos por actos de extraordinária bravura, generosidade e solidarie-  mesmo fundo heróico, cujos elementos se manifestam nas mulheres
         dade realizados sob condições adversas de mar, correndo sérios ris-  do mar de forma igual e concordante, simultaneamente emotiva e pro-
         cos de vida para resgatar pessoas, muitas vezes sem esperar outra  funda. Emotiva, porque o pintor exprime o que cada uma sente, mul-
         recompensa para além a satisfação do dever cumprido. Entre nós,  tiplicando-o em todas elas, de forma a que o nexo conjunto adquire a
         são nomes maiores destes “Lobos do mar”, figuras lendárias e refe-  condição de paixão, pela intensidade e pela absorção generalizada de
         rências obrigatórias para todos aqueles que, hoje, têm responsabili-  um espírito de exaltação da vida. Profunda, porque o artista penetra
         dades no salvamento a náufragos, o Gabriel Ançã, o Joaquim Ber-  na alma dessas mulheres para evidenciar que, na sua essência, há co-
         nardo de Sousa Lobo (Joaquim da Rita), o Joaquim Lopes (Joaquim  munidade e convergência de sentimentos quando estão vidas em ris-
         da Falua), o José Ro-                                                                  co. E, elas, perante o
         drigues Maio (Cego                                                                     perigo, não se impor-
         do Maio) e o José Ra-                                                                  Foto António Sacchetti  tam com a sua morte.
         bumba (Aveiro).                                                                        Para algumas delas a
           Homens do mar,                                                                       morte, até então, não
         simples e que vive-                                                                    tinha sido mais que
         ram com humildade.                                                                     uma palavra que de-
         Extremamente deter-                                                                    signa uma circuns-
         minados, altruístas e                                                                  tância vaga e remota,
         caridosos. Quando                                                                      mas que, de repente,
         se tratou de auxiliar                                                                  se poderá concretizar
         o seu semelhante, rea-                                                                 numa realidade dra-
         lizaram façanhas de                                                                    mática. Elas preocu-
         ímpar valentia, que                                                                    pam-se, antes, com
         os imortalizaram,                                                                      a vida daqueles que
         não só pelo esforço,                                                                   amam. Por isso, a sen-
         pelo sentimento de                                                                     sação que mostram e
         amor e pela fidelida-                                                                   transmitem é de sere-
         de que demonstra-                                                                      na valentia, de amor
         ram, mas, também,                                                                      fraternal e de respon-
         pela firme obediên-                                                                    sabilidade moral.
         cia que revelaram à obrigação de proteger, com todos seus recursos,   A iminente probabilidade do amor perdido inspira nas mulheres
         quem, num momento de suprema aflição, deles necessitou. Muitas  do mar uma serena valentia. Serena, porque prudente nos gestos e
         vezes, quando outros recuaram, eles decidiram fazer-se ao mar em  nas acções coordenadas. Serena, porque tranquila no espírito e im-
         pequenas embarcações, liderando com firmeza e saber os seus ho-  perturbável diante do perigo. Serena, porque com a graça natural e
         mens, no salvamento daqueles que já tinham perdido a esperança  o calmo domínio das emoções que revelam diante de uma situação
         de ser socorridos. Estes actos excepcionais só são realizados por pes-  adversa. Valente, porque não receiam padecimentos físicos ou morais.
         soas com uma invulgar vontade, firmeza de propósito e resolução.  Valente, porque afrontam o mar alterado.
         Também exigem extraordinários sentimentos altruístas, fundados na   Tendo, por vezes, vidas tão diferentes no percurso, mas tão seme-
         bondade e na sensibilidade para a iminência do fim trágico de vidas  lhantes no amor fraternal que as norteiam, as mulheres do mar com-
         e para o desejo inquebrantável de o evitar. Tais gestos só são possí-  preendem o risco, a imensa possibilidade de perigo que implica o
         veis a quem, por amor à condição humana, sente o ímpeto moral de  salvamento a náufragos, mas não conseguem imaginar a vida sem
         salvar os outros.                                    aqueles que amam. Elas identificam-se no sofrimento e na fidelidade
           Paradoxalmente, a figura que ilustra este texto, sendo alusiva ao  à vida, na angústia terrível que o pressentimento da morte dos seus
         salvamento de náufragos, só inclui mulheres. Podemos certamente  provoca, e na esperança do futuro que, tantas vezes, só a acção arro-
         interrogarmo-nos sobre o papel feminino no salvamento marítimo.  jada e com desinteresse pela própria vida, como é um salvamento
         Podemos até duvidar se, face à tradição que acabámos de evocar e  marítimo, permite almejar.
         aos registos conhecidos, terá alguma vez existido em Portugal um   A responsabilidade moral evidenciada por estas mulheres do mar,
         salva-vidas tripulado exclusivamente por mulheres. Podemos, ainda,  amadurecidas pela ingratidão da vida, é assombrosa! Preferem mor-
         criticar as particularidades técnicas da embarcação e dos seus apetre-  rer jovens a chorar o choro sem graça dos velhos, a chorar pelos pais,
         chos, os curiosos cintos de salvação ou o estado do mar. Mas, isso, é  pelos maridos e pelos filhos, por todos aqueles que foram abando-
         ficar somente pelo exame superficial do interessante quadro que se  nados e estão sózinhos perante a morte. Não querem lutos sem mor-
         encontra exposto no Instituto de Socorros a Náufragos. O nosso pro-  tos, que se prolongam até desaparecer a esperança. São mulheres que
         pósito é diferente! O que nos interessa é a análise intelectual às ideias  tudo subordinam ao movimento impetuoso e entusiástico das suas
         a que o pintor, através de um conjunto de mulheres do mar, deu ex-  almas, para salvar vidas humanas. Vencem o medo e suplantam-se,
         pressão viva, suave e animada.                       contrariando o que a inteligência recomenda. Estas mulheres do mar
           Certos elementos que compõem a essência dessas ideias, emergem  são a expressão da força que poderá inspirar cada um de nós a reali-
         neste quadro de forma declarada e distintiva. Poderão ser considera-  zar feitos supremos em prol do próximo.
         dos fortes ou fracos, consoante a sensibilidade de cada um e a reacção                                Z

         6  JULHO 2006 U REVISTA DA ARMADA
   219   220   221   222   223   224   225   226   227   228   229