Page 320 - Revista da Armada
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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (18)
Uma Questão de Confiança
Uma Questão de Confiança
uitos dos meus so-
fridos leitores terão,
Mjá, experimentado
aquela desconfortável sensa-
ção que antecede uma ava-
liação ou inspecção ao seu
serviço: um pequeno nó no
estômago acompanhado por
múltiplos arrepios ao longo
da espinal-medula. Para o
pessoal embarcado, então, a
simples visão da equipa de
avaliação em aproximação
a partir da raiz do cais ou na
embarcação que a transpor-
ta ao navio é suficiente para
acrescentar aos sintomas atrás
referidos outros mais visíveis,
tais como suores frios, tremo-
res nas pernas e interrupção
do afluxo sanguíneo às ex-
tremidades do corpo (dando
origem a um outro fenómeno
conhecido por palidez - que
nalguns casos poderá atingir
o grau cadavérico ou mesmo
de lençol lavado com aquele
detergente que deixa a roupa
branca como a neve).
É certo que as avaliações já
não são consideradas um “bi-
cho-de-sete-cabeças”. Tempos
houve, porém, em que eram
vistas como algo muito pior. Falo, natural- Em Fevereiro de 1994, quando a nossa num espaço de máquinas. Contudo, este
mente do primeiro contacto que a nossa “Vasco de Gama” se preparava para o seu avançou em minha “defesa”, garantindo
Marinha teve com elas, pelo menos nos segundo treino operacional em terras de que eu seria capaz de aguentar o “emba-
moldes em que hoje as conhecemos: tínha- Sua Majestade, estava ainda bem viva a te” tão bem como qualquer outro oficial
mos acabado de receber a primeira fraga- memória do choque sofrido poucos anos a bordo, incluindo ele próprio. E como
ta da classe “Vasco da Gama” e tratou-se antes. Desta vez, porém, íamos devida- argumento apresentava os muitos servi-
logo de a enviar à Inglaterra para frequentar mente “calçados” com os relatórios da ços em que eu servira como seu adjunto
o que então se designava por Basic Opera- primeira ronda de treinos dos navios da (embora deva dizer que hoje me lembro
tional Sea Training, vulgo B.O.S.T. (sigla que classe. Em todo o caso havia a preocupa- muito mais das suas anedotas e dos seus
algumas das suas “vítimas”, ressabiadas, se ção de deixar uma impressão favorável, eloquentes comentários às sessões televi-
apressaram a deturpar, aportuguesando-a se possível ultrapassando a marca dos ca- sivas do Playboy Late Night Show do que
com terminação de género feminino). Está maradas que nos tinham antecedido. dos exercícios de combate a incêndios).
mais do que visto que os nossos anglos alia- Na altura um imberbe Guarda-Marinha, Muito relutantemente, o Imediato lá con-
dos, na altura calejados pelo ainda recente tenho de confessar que não me sentia em cordou, preparando-se para o pior com
conflito das Falkland, cascaram forte e feio posição de dar um grande contributo para um “seja o que Deus quiser!”.
nos verdinhos marinheiros lusos. Diga-se, uma boa classificação do navio, embora No dia do exercício toda a guarnição
no entanto, com toda a justiça, que o tão estivesse decidido a tirar o máximo parti- – excepto o pessoal de “castigo” – foi
criticado espírito de improviso português do daquela experiência. Sucedeu, porém, encorajada a ir de licença, de modo a
acabou por revelar-se fundamental – à cus- na primeira semana de treino em terra, que o grupo de serviço ficasse exclusi-
ta de muitas noites em branco e de grandes calhar-me um serviço de escala no dia vamente entregue a si próprio. Antes de
olheiras – para salvar a situação, depois da em que estava programado um exercício ir para terra, o nosso bom Engenheiro
“esfrega” inicial. Graças aos ensinamentos de incêndio no porto. Preocupado com os veio dar-me as últimas recomendações,
colhidos desse primeiro choque, foi pos- resultados da avaliação que dali resulta- enfatizando:
sível às guarnições que se seguiram fazer ria, o Imediato estava a pensar seriamente - Não te esqueças: faz de conta que é
boa figura e ir, progressivamente, ultrapas- em fazer-me substituir por um oficial mais apenas mais um treino no Alfeite.
sando o nível de desempenho dos seus an- experiente, talvez mesmo pelo próprio Não me lembro já do que lhe respon-
tecessores, até aos brilharetes recentemente Chefe do Serviço de Limitação de Avarias, di, mas devo ter-lhe desejado, por outras
conseguidos. uma vez que o “sinistro” deveria incidir palavras, que não queimasse as mãos que
30 SETEMBRO/OUTUBRO 2006 U REVISTA DA ARMADA