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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (18)



             Uma Questão de Confiança
             Uma Questão de Confiança



                uitos dos meus so-
                fridos leitores terão,
         Mjá, experimentado
         aquela desconfortável sensa-
         ção que antecede uma ava-
         liação ou inspecção ao seu
         serviço: um pequeno nó no
         estômago acompanhado por
         múltiplos arrepios ao longo
         da espinal-medula. Para o
         pessoal embarcado, então, a
         simples visão da equipa de
         avaliação em aproximação
         a partir da raiz do cais ou na
         embarcação que a transpor-
         ta ao navio é suficiente para
         acrescentar aos sintomas atrás
         referidos outros mais visíveis,
         tais como suores frios, tremo-
         res nas pernas e interrupção
         do afluxo sanguíneo às ex-
         tremidades do corpo (dando
         origem a um outro fenómeno
         conhecido por palidez - que
         nalguns casos poderá atingir
         o grau cadavérico ou mesmo
         de lençol lavado com aquele
         detergente que deixa a roupa
         branca como a neve).
           É certo que as avaliações já
         não são consideradas um “bi-
         cho-de-sete-cabeças”. Tempos
         houve, porém, em que eram
         vistas como algo muito pior. Falo, natural-  Em Fevereiro de 1994, quando a nossa  num espaço de máquinas. Contudo, este
         mente do primeiro contacto que a nossa  “Vasco de Gama” se preparava para o seu  avançou em minha “defesa”, garantindo
         Marinha teve com elas, pelo menos nos  segundo treino operacional em terras de  que eu seria capaz de aguentar o “emba-
         moldes em que hoje as conhecemos: tínha-  Sua Majestade, estava ainda bem viva a  te” tão bem como qualquer outro oficial
         mos acabado de receber a primeira fraga-  memória do choque sofrido poucos anos  a bordo, incluindo ele próprio. E como
         ta da classe “Vasco da Gama” e tratou-se  antes. Desta vez, porém, íamos devida-  argumento apresentava os muitos servi-
         logo de a enviar à Inglaterra para frequentar  mente “calçados” com os relatórios da  ços em que eu servira como seu adjunto
         o que então se designava por Basic Opera-  primeira ronda de treinos dos navios da  (embora deva dizer que hoje me lembro
         tional Sea Training, vulgo B.O.S.T. (sigla que  classe. Em todo o caso havia a preocupa-  muito mais das suas anedotas e dos seus
         algumas das suas “vítimas”, ressabiadas, se  ção de deixar uma impressão favorável,  eloquentes comentários às sessões televi-
         apressaram a deturpar, aportuguesando-a  se possível ultrapassando a marca dos ca-  sivas do Playboy Late Night Show do que
         com terminação de género feminino). Está  maradas que nos tinham antecedido.  dos exercícios de combate a incêndios).
         mais do que visto que os nossos anglos alia-  Na altura um imberbe Guarda-Marinha,  Muito relutantemente, o Imediato lá con-
         dos, na altura calejados pelo ainda recente  tenho de confessar que não me sentia em  cordou, preparando-se para o pior com
         conflito das Falkland, cascaram forte e feio  posição de dar um grande contributo para  um “seja o que Deus quiser!”.
         nos verdinhos marinheiros lusos. Diga-se,  uma boa classificação do navio, embora   No dia do exercício toda a guarnição
         no entanto, com toda a justiça, que o tão  estivesse decidido a tirar o máximo parti-  – excepto o pessoal de “castigo” – foi
         criticado espírito de improviso português  do daquela experiência. Sucedeu, porém,  encorajada a ir de licença, de modo a
         acabou por revelar-se fundamental – à cus-  na primeira semana de treino em terra,  que o grupo de serviço ficasse exclusi-
         ta de muitas noites em branco e de grandes  calhar-me um serviço de escala no dia  vamente entregue a si próprio. Antes de
         olheiras – para salvar a situação, depois da  em que estava programado um exercício  ir para terra, o nosso bom Engenheiro
         “esfrega” inicial. Graças aos ensinamentos  de incêndio no porto. Preocupado com os  veio dar-me as últimas recomendações,
         colhidos desse primeiro choque, foi pos-  resultados da avaliação que dali resulta-  enfatizando:
         sível às guarnições que se seguiram fazer  ria, o Imediato estava a pensar seriamente   - Não te esqueças: faz de conta que é
         boa figura e ir, progressivamente, ultrapas-  em fazer-me substituir por um oficial mais  apenas mais um treino no Alfeite.
         sando o nível de desempenho dos seus an-  experiente, talvez mesmo pelo próprio   Não me lembro já do que lhe respon-
         tecessores, até aos brilharetes recentemente  Chefe do Serviço de Limitação de Avarias,  di, mas devo ter-lhe desejado, por outras
         conseguidos.                       uma vez que o “sinistro” deveria incidir  palavras, que não queimasse as mãos que

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