Page 366 - Revista da Armada
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VALORES, IDENTIDADE E MEMÓRIA                                                                 8




























                Sentimentos marinheiros



           «Ó mar salgado, quanto do teu sal                  e procuramos manter familiaridade e intimidade com Ele. Quando
           São lágrimas de Portugal!                          perdemos a fé, a esperança desvanece-se, o desespero domina-nos e
           Por te cruzarmos, quantas mães choraram,           sentimo-nos perdidos e incapazes de vencer os perigos e os abismos
           Quantos filhos em vão rezaram!                      que o mar encerra.
           Quantas noivas ficaram por casar                     Esta relação de dor com prazer entre a saudade e a esperança, que
           Para que fosses nosso, ó mar!»                     domina os nossos sentimentos, resulta da alternância entre o bem de
                                                              ontem, que é a saudade, com o bem do futuro, que é a esperança. É
               o ler a recente reedição de «A campanha do Argus – uma via-  em torno da saudade e da esperança que vivemos no mar. E é com
               gem na pesca do bacalhau», de Alan Villiers, aflorou recorren-  sacrifício que o mantemos nosso! Por isso Fernando Pessoa também
         Atemente ao meu pensamento o poema «Mar Português», onde  se interroga sobre o preço de tais circunstâncias.
         Fernando Pessoa expressa de forma magistral os sacrifícios de um Povo
         que, para ser Nação, teve de se envolver na tarefa gigantesca, arreba-  «Valeu a pena? Tudo vale a pena
         tadora e permanente de tornar seu o mar. Na realidade foi ele que nos   Se a alma não é pequena.
         uniu e mobilizou para a construção nacional, e foi ele que estruturou   Quem quer passar “além do Bojador”
         o nosso carácter colectivo. Certamente que hoje determina-o de forma   Tem de passar além da dor.
         diferente do passado, porque as circunstâncias são outras, mas conti-  Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
         nua com uma influência decisiva no modo de sentir dos portugueses.   Mas nele espelhou o céu.»
         E, nós, os que fazemos do mar a nossa vida, sentimos saudade e espe-
         rança, permanentemente entrelaçadas numa relação complexa do tipo   E o céu, para nós, os marinheiros de Portugal, representa a esperan-
         amargo-doce, que domina o nosso espírito quando navegamos.   ça num mundo melhor. Aponta-nos a virtude pela qual acreditamos
           Saudade é melancolia, é dor moral, é ansiedade profunda provoca-  no nosso semelhante e cultivamos a liberdade, a justiça e a solidarie-
         da pela lembrança da família e dos amigos que estão longe. É o pesar,  dade como princípios fundamentais do relacionamento humano. Li-
         é a mágoa, é a tristeza causada pela distância à nossa terra. No mar  berdade física e intelectual, que permite aos Homens viver sem vio-
         temos saudades da nossa mulher e dos nossos filhos, dos seus sorrisos  lentação da sua vontade e sem dependência de arbítrios, mas com
         graciosos e inocentes. É no mar que, ao crepúsculo, quando o Sol se  consideração pelos limites socialmente estabelecidos. Justiça, decor-
         oculta a ocidente, rememoramos episódios da nossa vida, de intensa  rente da universalidade dos direitos e da igualdade perante a lei. So-
         afeição viva, de determinada fidelidade e abnegados sacrifícios pela  lidariedade, que se manifesta no empenho da procura da harmonia,
         família, e de profunda afabilidade pelos amigos. Recordamos as flo-  da paz, do entendimento e da cooperação entre os povos.
         res perfumadas e o canto das aves nos alegres campos, as areias cin-  Sabemos bem, pela vivência a bordo, que para se cultivarem estes
         tilantes sob um Sol resplandecente e o céu de mágico azul do nosso  grandes princípios é preciso ser tolerante, revelando compreensão e
         querido Portugal. Quantas vezes estes pensamentos são subitamente  respeito pelas opiniões dos outros, tão frequentemente opostas. Nos
         interrompidos por um mar de lágrimas amargas, que nos inundam  navios ou num mundo cada vez mais interdependente, ser solidário
         a alma, que chora nos momentos da mais pungente saudade. Afas-  é também revelar capacidade para aceitar, com serenidade (ou com
         tados do mundo nos nossos pequenos navios, ignorando os perigos  serena ponderação), atitudes contrárias e eventuais dificuldades, cada
         dos elementos, à mercê da solidão, somos invadidos pela saudade, o  vez mais vulgares. É, ainda, ser verdadeiro e revelar rigor, sincerida-
         farol que irradia a esperança na imensidão do oceano.  de e boa fé naquilo que se diz e na forma como se actua. Ser fraterno
           A esperança é a virtude pela qual nós, os marinheiros de Portugal,  é, em suma, viver todos os dias o espírito de Natal!
         confiamos que Deus nos dará auxílio para superar dificuldades. É,   Foi o mar que nos gerou como Povo e é o mar que nos mantém
         por vezes, o último pilar da vida. Aquele sobre o qual se estrutura a  como Nação. Também é o mar que determina o nosso carácter colec-
         firme convicção na bondade de Deus e na fidelidade nas promessas  tivo. Por isso, é o mar que nos obriga a nós, os marinheiros de Portu-
         que Jesus Cristo, em seu nome, fez aos Homens. Para existir espe-  gal, a viver num sereno desassossego, entre a saudade e a esperança,
         rança é imprescindível confiar em Deus. Por isso revelamos tanta  tendo no horizonte a liberdade, a justiça e a solidariedade, cultivadas
         fé! Acreditamos na probidade, na bondade e na perfeição de Deus,  em tolerância para o bem da Humanidade.  Z

         4  DEZEMBRO 2006 U REVISTA DA ARMADA
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