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HISTÓRIAS DA BOTICA (44)



                        O palrador oficial médico
                        O palrador oficial médico

         e a má fortuna do falar…a cantar…
         e a má fortuna do falar…a cantar…



             rago-vos hoje a his-                                                            – agora e aqui – qualquer
             tória de determi-                                                               palavra educada e própria,
         Tnado jovem oficial                                                                 para denunciar todo o sen-
         médico que por descrição                                                            timento negativo, que tal
         chamarei o palrador, e que                                                          acção me induz.
         desde este episódio muito                                                             Devem aceitar-se sem-
         prezo. Esse oficial, que eu                                                          pre, creio eu, quaisquer
         mal conhecia, tinha uma                                                             críticas sobre conteúdos
         apresentação a fazer num                                                            e opiniões. Mesmo esta
         congresso médico – militar                                                          crítica, particularmente se
         internacional. Tratava -se de                                                       negativa, deve ser feita em
         um assunto de difícil abor-                                                         ambiente próprio. Críticas
         dagem, uma vez que foca-                                                            a defeitos físicos, sem refe-
         va a avaliação, feita de for-                                                       rência a conteúdos, só re-
         ma directa pelos pacientes,                                                         velam intolerância. Se as-
         à abordagem e à empatia                                                             sim não fora, andávamos a
         evidenciada pelos médi-                                                             apontar os cegos, os coxos
         cos que os tratam. Talvez                                                           e os surdos na rua – neces-
         por isso e particularmente                                                          sariamente diferentes, logo
         porque este tema é delica-                                                          piores. Esse não é o meu
         do entre médicos – nem                                                              mundo. O meu é o mundo
         todos preocupados com esta temática tão deli-  ta paz me invadiu, como me invade sempre que  dos fracos que somos todos. Poderia, de todo o
         cada – parecia invulgarmente nervoso…  sinto (e sinto-o muitas vezes) que alguém ven-  modo, ficar agora calado. No entanto, há coi-
           Avançou, contudo, decidido e de um modo  ceu, com arte e ousadia, uma dificuldade que  sas que se não podem tolerar, afinal até Cristo,
         jovial (que por certo tentava disfarçar a ansieda-  herdou sem culpa ou pecado. É nas dificuldades  o paradigma da bondade no mundo ocidental,
         de que o preocupava). Lá apresentou o seu tra-  que os homens dão o seu melhor e as dificulda-  expulsou os vendilhões do templo por imora-
         balho, de uma forma algo ligeira e bem dispos-  des, sei-o profundamente, criam melhores pes-  lidade e desrespeito. Por outro lado, o jovem
         ta, com imagens e fotos pessoais. Reparei que,  soas. Tudo, portanto, parecia bem, na harmonia  palrador ficará a saber que não está só. Ficará,
         tal como eu em situações de alguma ansiedade,  que a vida deve ter, naquela tarde.  principalmente, ciente que nem todos os médi-
         também gaguejava um pouco. Não me pareceu,   Infelizmente, algumas horas depois o jovem  cos navais são ou pensam (ou sequer seriam ca-
         a mim e às demais pessoas da sala com quem  palrador teve a infeliz ideia de perguntar a ou-  pazes) de proceder de tal modo. Por ele e pelos
         conversei, que a mensagem ficasse de modo  tro oficial médico, mais velho, a opinião deste  outros médicos jovens que estão e (espero) virão
         algum prejudicada por aquela particularidade.  sobre a comunicação que tinha feito. Este num  a estar, vale a pena afirmar a diferença.
         Ao contrário, num sentimento de irmandade,  esgar de desaprovação respondeu-lhe:  Ao longo dos anos, também eu fui sendo ví-
         senti-me perto daquele jovem, por também   -Não gostei! Tu és gago e demoras muito a  tima da descriminação e da crítica gratuita. Du-
         gaguejar em iguais circunstâncias e saber, com  dizer as coisas. Perdes tempo…  rante algum tempo sofri com isso e gritei contra
         a certeza da experiên cia, as dificuldades extra   Para o jovem médico, foi como um murro no  a injustiça. Nada consegui e muitas vezes essa
         que tal característica acarreta. Pareceu-me que  estômago. Afastou-se do grupo e ficou silencio-  indignação foi e tem sido usada contra mim.
         ele (tal como eu fiz e faço muitas vezes) perce-  so o resto dia. Parecia que, desde esse instan-  Prefiro agora suportar, estoicamente, no silên-
         beu que essa dificuldade se vence com maior  te, nada mais lhe interessou. No meu coração,  cio da alma, tais indignidades. Percebi contudo
         criatividade, podendo até tornar-se vantagem  também, nasceu uma tristeza profunda. Lem-  – tal como esse jovem médico compreenderá
         acrescida, quando comparada com muitos ou-  brei-me, num instante, de uma outra médica,  um dia – que não podemos permitir, ou tole-
         tros “grandes comunicadores”, de tom mono-  verdadeira víbora, que no hospital em que fiz  rar, que tudo aquilo que somos, dependa de
         córdico e sem qualquer ligação à audiência.  a especialidade, teimava em me prejudicar por  ataques ou críticas, nem de constrangimentos
         A gaguez chama imediatamente a atenção do  ser gago. Fazia-o de forma pública – tal com o  vis em que outros nos queiram fazer acreditar.
         público e, por isso, nunca permite o anonima-  fez este outro médico ao camarada – para as-  A minha história – que se funde com estas his-
         to maçador e monótono – é esta, caros leitores,  segurar que a perversidade da crítica era mais  tórias que o leitor tem vindo a conhecer – será
         a mais valia deste “defeito” do discurso, que ao  eficaz. Criticar alguém com argumentos que se  intrinsecamente minha, diferente, mas será feita
         longo da vida aprendi a aproveitar, em palcos  baseiam em incapacidades físicas do próprio é  por tudo aquilo que sou, incluindo os defeitos
         tão diversos como algumas reuniões temáticas  horrendo. Representa o pior que a alma humana  físicos que herdei. O mesmo, digo eu daqui a
         da Marinha, até congressos de Medicina em  consegue transportar e associa-se a gente sem  esse jovem camarada, que, assim espero, sabe-
         Portugal e no estrangeiro, onde, algumas vezes,  alma e sem grande capacidade – já que eles  rá que a diferença, mesmo física, é sempre uma
         já falei publicamente.             próprios raramente se expõem à crítica, como  riqueza e não um defeito triste, pelo qual tem
           E assim, felicitei o jovem oficial médico.  era o caso da tal médica, que não falava em pú-  que padecer…ou pedir desculpa…
         Achei genuinamente que tinha estado bem, que  blico, nem para isso era convidada. Do mesmo   Em dias assim, rodeado pela incompreensão
         tinha dado o seu melhor e que tinha sido um  modo, esta exposição de defeitos físicos, parti-  e pela perplexidade, socorro-me de um manual
         bom crédito para a prestação médica naval, que  cularmente em frente de estranhos, ultrapassa  de cânticos espirituais negros adquirido numa
         terá sido excelente naquele congresso. Uma cer-  todos os limites da moralidade e não encontro  Missão Nato, que aportou nos Estados Unidos.

         30  FEVEREIRO 2006 U REVISTA DA ARMADA
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