Page 68 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (44)
O palrador oficial médico
O palrador oficial médico
e a má fortuna do falar…a cantar…
e a má fortuna do falar…a cantar…
rago-vos hoje a his- – agora e aqui – qualquer
tória de determi- palavra educada e própria,
Tnado jovem oficial para denunciar todo o sen-
médico que por descrição timento negativo, que tal
chamarei o palrador, e que acção me induz.
desde este episódio muito Devem aceitar-se sem-
prezo. Esse oficial, que eu pre, creio eu, quaisquer
mal conhecia, tinha uma críticas sobre conteúdos
apresentação a fazer num e opiniões. Mesmo esta
congresso médico – militar crítica, particularmente se
internacional. Tratava -se de negativa, deve ser feita em
um assunto de difícil abor- ambiente próprio. Críticas
dagem, uma vez que foca- a defeitos físicos, sem refe-
va a avaliação, feita de for- rência a conteúdos, só re-
ma directa pelos pacientes, velam intolerância. Se as-
à abordagem e à empatia sim não fora, andávamos a
evidenciada pelos médi- apontar os cegos, os coxos
cos que os tratam. Talvez e os surdos na rua – neces-
por isso e particularmente sariamente diferentes, logo
porque este tema é delica- piores. Esse não é o meu
do entre médicos – nem mundo. O meu é o mundo
todos preocupados com esta temática tão deli- ta paz me invadiu, como me invade sempre que dos fracos que somos todos. Poderia, de todo o
cada – parecia invulgarmente nervoso… sinto (e sinto-o muitas vezes) que alguém ven- modo, ficar agora calado. No entanto, há coi-
Avançou, contudo, decidido e de um modo ceu, com arte e ousadia, uma dificuldade que sas que se não podem tolerar, afinal até Cristo,
jovial (que por certo tentava disfarçar a ansieda- herdou sem culpa ou pecado. É nas dificuldades o paradigma da bondade no mundo ocidental,
de que o preocupava). Lá apresentou o seu tra- que os homens dão o seu melhor e as dificulda- expulsou os vendilhões do templo por imora-
balho, de uma forma algo ligeira e bem dispos- des, sei-o profundamente, criam melhores pes- lidade e desrespeito. Por outro lado, o jovem
ta, com imagens e fotos pessoais. Reparei que, soas. Tudo, portanto, parecia bem, na harmonia palrador ficará a saber que não está só. Ficará,
tal como eu em situações de alguma ansiedade, que a vida deve ter, naquela tarde. principalmente, ciente que nem todos os médi-
também gaguejava um pouco. Não me pareceu, Infelizmente, algumas horas depois o jovem cos navais são ou pensam (ou sequer seriam ca-
a mim e às demais pessoas da sala com quem palrador teve a infeliz ideia de perguntar a ou- pazes) de proceder de tal modo. Por ele e pelos
conversei, que a mensagem ficasse de modo tro oficial médico, mais velho, a opinião deste outros médicos jovens que estão e (espero) virão
algum prejudicada por aquela particularidade. sobre a comunicação que tinha feito. Este num a estar, vale a pena afirmar a diferença.
Ao contrário, num sentimento de irmandade, esgar de desaprovação respondeu-lhe: Ao longo dos anos, também eu fui sendo ví-
senti-me perto daquele jovem, por também -Não gostei! Tu és gago e demoras muito a tima da descriminação e da crítica gratuita. Du-
gaguejar em iguais circunstâncias e saber, com dizer as coisas. Perdes tempo… rante algum tempo sofri com isso e gritei contra
a certeza da experiên cia, as dificuldades extra Para o jovem médico, foi como um murro no a injustiça. Nada consegui e muitas vezes essa
que tal característica acarreta. Pareceu-me que estômago. Afastou-se do grupo e ficou silencio- indignação foi e tem sido usada contra mim.
ele (tal como eu fiz e faço muitas vezes) perce- so o resto dia. Parecia que, desde esse instan- Prefiro agora suportar, estoicamente, no silên-
beu que essa dificuldade se vence com maior te, nada mais lhe interessou. No meu coração, cio da alma, tais indignidades. Percebi contudo
criatividade, podendo até tornar-se vantagem também, nasceu uma tristeza profunda. Lem- – tal como esse jovem médico compreenderá
acrescida, quando comparada com muitos ou- brei-me, num instante, de uma outra médica, um dia – que não podemos permitir, ou tole-
tros “grandes comunicadores”, de tom mono- verdadeira víbora, que no hospital em que fiz rar, que tudo aquilo que somos, dependa de
córdico e sem qualquer ligação à audiência. a especialidade, teimava em me prejudicar por ataques ou críticas, nem de constrangimentos
A gaguez chama imediatamente a atenção do ser gago. Fazia-o de forma pública – tal com o vis em que outros nos queiram fazer acreditar.
público e, por isso, nunca permite o anonima- fez este outro médico ao camarada – para as- A minha história – que se funde com estas his-
to maçador e monótono – é esta, caros leitores, segurar que a perversidade da crítica era mais tórias que o leitor tem vindo a conhecer – será
a mais valia deste “defeito” do discurso, que ao eficaz. Criticar alguém com argumentos que se intrinsecamente minha, diferente, mas será feita
longo da vida aprendi a aproveitar, em palcos baseiam em incapacidades físicas do próprio é por tudo aquilo que sou, incluindo os defeitos
tão diversos como algumas reuniões temáticas horrendo. Representa o pior que a alma humana físicos que herdei. O mesmo, digo eu daqui a
da Marinha, até congressos de Medicina em consegue transportar e associa-se a gente sem esse jovem camarada, que, assim espero, sabe-
Portugal e no estrangeiro, onde, algumas vezes, alma e sem grande capacidade – já que eles rá que a diferença, mesmo física, é sempre uma
já falei publicamente. próprios raramente se expõem à crítica, como riqueza e não um defeito triste, pelo qual tem
E assim, felicitei o jovem oficial médico. era o caso da tal médica, que não falava em pú- que padecer…ou pedir desculpa…
Achei genuinamente que tinha estado bem, que blico, nem para isso era convidada. Do mesmo Em dias assim, rodeado pela incompreensão
tinha dado o seu melhor e que tinha sido um modo, esta exposição de defeitos físicos, parti- e pela perplexidade, socorro-me de um manual
bom crédito para a prestação médica naval, que cularmente em frente de estranhos, ultrapassa de cânticos espirituais negros adquirido numa
terá sido excelente naquele congresso. Uma cer- todos os limites da moralidade e não encontro Missão Nato, que aportou nos Estados Unidos.
30 FEVEREIRO 2006 U REVISTA DA ARMADA