Page 176 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (51)



                          O Professor Mokambo
                           O Professor Mokambo

             á estava ele, no corredor do Centro de  lembrar aquela bebida do pequeno almoço, que  a principal e mais jocosa foi a de ser eu próprio
             Medicina Naval. O Sr. Cabo Fininho, de  muitos recordarão…). O anúncio do professor  a criar um “franchising” com anúncios nos prin-
         Lalcunha e de corpo, já que tem de altura  Mokambo – continuava o feliz paciente – dizia  cipais jornais sérios – os mesmos que publicam
         cerca de 1,75 m e um peso inferior aos 60 Kg. “É  que ele tratava tudo, quer do corpo, quer do  os anúncios dos outros astrólogos videntes afri-
         uma carga de nervos, concentrada neste esque-  espírito e como nenhuma medicação resulta-  canos – publicitando consultórios de Norte a Sul
         leto ambulante…” – afirmou convicta a esposa  va, eu achei que tanta dificuldade só podia ser  do país, oferecendo tratamentos a tudo – sem
         aquando da primeira consulta. Depois dessa,  mau olhado….             esquecer, é claro, de explicitar o tratamento das
         tinham havido muitas outras, sempre por uma   Então o que lhe fez o professor Mokambo?  “dificuldades sexuais”, garante eficaz de mui-
         hipertensão arterial séria, inexplicável num ho-  - Espicacei eu curioso.  tos clientes. Teria, sem dúvida, que fazer uma
         mem jovem e magro. Parecia ser de facto a an-   - Ó Doutor ele deitou umas sortes com uns  foto com ar pomposo e vestes exóticas, o que
         siedade que transpirava no seu semblante, que  dados estranhos, confirmou rapidamente que  implicaria passar largos dias num solário (para
         lhe corrompia o ser, manifestando-se daquele  era de facto um problema de mau olhado e de-  adquirir o necessário e convincente tom de
         modo. Tinha já percorrido um calvário de mé-  pois soprou um fumo bem cheiroso por cima  pele). Finalmente, para que tudo resultasse, só
         dicos dentro e fora da Marinha. Nada, nem os  da minha cabeça, para afastar os maus espíritos.  teria que assegurar a capacidade de consultar
         distintos colegas, nem o saquinho dos muitos  Senti-me logo mais calmo e a tensão normali-  os pacientes em presença ou à distância, como
         medicamentos pareciam ter resolvido a situação.  zou. Foi um alívio Doutor – rematou – Deixei  é hábito nos referidos anúncios e tudo estaria
         Eu próprio já tinha tentado alterar medicamentos  de discutir com a minha mulher. Já nem me  preparado para o sucesso.
         e associar aos ansiolíticos conselhos para paz e  enervo no trânsito e, na verdade, já nada me   A certeza de que esta última abordagem re-
         calma, mas nada, nada mesmo, parecia resultar  perturba…              sulta economicamente viável, está número sem-
         neste extraordinário ser humano…     Retirei-lhe quase toda a medicação e fiquei  pre crescente dos anúncios desta natureza, nos
           Nesse dia, contudo, o Cabo Fininho aparenta-  pensativo, sem saber se perturbado, se divertido  jornais nacionais. Em Portugal, aliás, vive-se um
         va uma calma rara e uma face descansada, que  com todo aquele relato.  momento de particular expansão para as me-
         não lhe conhecia. Avancei medroso:    Comentei nos dias seguintes – sem revelar o  dicinas alternativas. Qualquer indivíduo pode
           - Então Sr. Cabo a sua tensão continua alta?  nome do paciente – este perturbador caso com  anunciar-se capaz de curar isto e aquilo, de
           - Não Sr. Doutor – respondeu ele com um tom  outros colegas médicos e camaradas oficiais de  exibir este ou aquele diploma e abrir um qual-
         de voz que quase me assustou pela acalmia que  Marinha. Dos primeiros vieram comentários, so-  quer consultório. É a inimputabilidade típica
         apresentava – venho-lhe até perguntar se posso  bre a abordagem médica actual, cada vez mais  do subdesenvolvimento, geralmente associada
         deixar a medicação?                fria e distante. A abordagem da medicina mo-  a países menos organizados e com menos cul-
           Fiquei estupefacto, mas as surpresas não aca-  derna tende a ser tecnicista e muito limitada no  tura científica do que um país da Europa civili-
         baram aqui e o Sr. Cabo continuou:  tempo que conta (aquele em que se ausculta o  zada, no século XXI, deveria ter.
           - Olhe Sr. Doutor, a pressão máxima não tem  espírito do paciente), ineficaz, portanto, nestes   Os média, ainda outra vez, são, na minha mo-
         subido dos 120 e a mínima anda pelos 70. In-  casos em que a causa da doença parece ser cla-  desta opinião, em grande parte responsáveis por
         crédulo, pedi-lhe o braço e confirmei: lá estava  ramente psicossomática. Por outro lado – pelo  esta situação Os meios de comunicação endeu-
         no mostrador electrónico 118-72 mmHg. Per-  menos no nosso país – tem havido um ataque  sam astrólogos – alguns pagos a peso de ouro
         feito – admiti eu em tom de espanto.  contínuo dos média à classe médica e a todas  para predizerem o futuro na televisão pública – e
           Perante o meu espanto o Sr. Fininho apro-  as classes que representem poder ou prestígio  muitos outros “milagreiros”, que rendem audiên-
         veitou:                            – como aconteceu aos próprios militares. Estes  cias e perpetuam a mais profunda ignorância.
           -Olhe Doutor, como nada resultava comigo,  ataques limitaram em grande medida o poder   Um outro tipo de perplexidades me assaltou
         decidi consultar um astrólogo vidente africano.  “místico” em tempos associado à actuação mé-  neste episódio: a descristianização real de um
         Sabe Doutor, um dos muitos anunciados nas pá-  dica em geral, que seriam particularmente úteis  povo, cuja fé católica completava o ser huma-
         ginas dos jornais: o professor Mokambo (nome  em casos como estes.    no (mesmo o mais humilde), e o afastava de
         adaptado por este vosso incipiente escritor, que   Contudo, foi do grupo dos oficiais de Marinha  crendices mais ou menos animistas e sobretu-
         soa parecido com o do verdadeiro mágico e faz  que retirei as melhores e mais divertidas ideias:  do mais primitivas. Outra ansiedade, por fim,
                                                                               deve-se aqueles pacientes dos astrólogos mila-
                                                                               greiros com doenças mais graves, de cariz emi-
                                                                               nentemente orgânico – não tão dependentes da
                                                                               calma íntima – que acreditando em sortes mi-
                                                                               lagrosas e magia perversa, morrem de doenças
                                                                               potencialmente curáveis…
                                                                                 Vou a caminho do supermercado agora. Tal-
                                                                               vez ainda se venda o “Mocambo”, a tal bebida
                                                                               com sabor a café. Para sossegar estas inquietu-
                                                                               des, vou fazer o possível por acreditar que esta
                                                                               bebida tem as artes mágicas do tal professor, que
                                                                               adivinha as doenças dos pacientes, mesmo sem
                                                                               os olhar nos olhos. Deve ser muito mais dotado
                                                                               do que eu, que mesmo num esforço supremo
                                                                               por lhes falar ao coração, nem sempre consegui
                                                                               saltar a longa distância – marcada pela secretária
                                                                               – entre o meu querer e a solidão de alguém…
                                                                                                               Z
                                                                                                             Doc

         30  MAIO 2007 U REVISTA DA ARMADA
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