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A MARINHA DE D. JOÃO III (28)
Os portugueses no Japão
Os portugueses no Japão
A muito provável, portanto, que aquela nave-
chegada dos portugueses ao Japão suko ou Francisco) e outro Kirishita ta Mota nipónicas, na altura de relações cortadas. É
permanece envolta numa densa teia (Kirishita designa apenas Cristão). E conti-
de mistérios e contradições própria nua a descrição relembrando-nos a introdu-
da concorrência documental dispersa, alheia ção das espingardas nas ilhas nipónicas, di- gação acabasse por tentar os próprios por-
tugueses a que demandassem as ilhas do
aos registos metódicos. Não existe um relato zendo que aqueles homens tinham na mão Japão por conta própria, e sem necessidade
da “primeira viagem ao Japão”, como acon- um objecto comprido, oco por dentro, onde de nenhuma tempestade.
tece com outros locais do Oriente – nomea- se põe uma droga (pólvora) e uma pequena Nós sabemos que o Japão não está pre-
damente da 1ª viagem de Vasco da Gama –, bala de chumbo, usando-se na posição de pé, sente no imaginário europeu sobre o Orien-
com um eco imediato nos textos dos cronis- com um olho fechado, e fazendo um clarão te, antes das viagens de Marco Polo e do seu
tas oficiais. A informação portuguesa mais e um estrondo como um trovão. “Com este fantástico relato que fala de Cipango. E é
incisiva é dada por António Galvão no Tra- objecto até se pode triturar uma parede de curioso que, apesar destas ilhas povoarem
tado dos Descobrimentos, onde diz: “No ferro, e pode-se matar homens e animais” – a argumentação colombina, não são uma
ano de 542, achando-se Diogo de Freitas no acrescenta o texto, demonstrando o fascínio obsessão dos portugueses que não as pro-
reino de Sião [...] lhe fugiram três portugue- que exerceu sobre os japoneses. curam oficialmente, em nenhuma circuns-
ses em um junco que tância. Sabe-se que
ia para a China: cha- eram conhecidas,
mavam-se António porque delas fala o
da Mota, Francisco boticário Tomé Pi-
Zeimoto e António res, na sua Suma
Peixoto. Indo-se de Oriental (1512-15),
caminho para tomar mas não existem
porto na cidade de documentos que
Liampó [...] deu tal revelem a preocu-
tormenta à popa que pação das encontrar
os apartou da terra, ou de com elas en-
e em poucos dias, tabular relações de
ao Levante, viram comércio. E é inte-
uma ilha em trinta ressante reflectir no
e dois graus, a que facto de que Pires as
chamam os Japões, nomeia como Japão,
que parecem ser topónimo que tem
aquelas Cipangas”. origem no termo
É certo que Antó- Chegada dos portugueses a Nagasaki. malaio “japung”,
nio Galvão nasceu Biombo de Kano Naizen, cerca de 1600. não havendo ne-
Lisboa, Museu da Arte Antiga.
na Índia e por lá vi- nhuma identifica-
veu a maior parte da sua vida, exercendo as Não há dúvida que os pormenores da des- ção imediata com o Cipango de Marco Polo,
funções de capitão de Ternate, entre 1536 e crição feita poucos anos depois dos aconte- o que talvez explique o aparente desinte-
1539, contudo, regressou a Lisboa no princí- cimentos conferem uma grande autoridade resse de quatro décadas. Temos, contudo,
pio da década de quarenta e só teve notícia ao texto, que apenas contradiz Galvão na a certeza que após esta primeira viagem se
desta viagem por interposta pessoa aliás, o data, indicando 1543 em vez de 1542. Georg desencadeou uma espécie de corrida ao Ja-
seu texto tem muitas imprecisões que foram Schurhammer – padre jesuíta que se dedicou pão, motivada pelo lucro da viagem, e pelo
fonte de sucessivos erros históricos sucessi- aos estudos sobre o Oriente no tempo de S. fascínio que esse povo exerceu sobre os por-
vamente repetidos. Francisco Xavier – dá mais crédito ao texto tugueses. Os escritos de S. Francisco Xavier
Atentemos, no entanto, ao facto em si, de japonês que aos portugueses, mas eu enten- são reveladores desse fascínio que, aliás,
que um junco com três portugueses alcan- do que qualquer deles pode ter cometido um era recíproco. O Teppõ-ki fala deste retorno
çou o Japão, na sequência de um temporal. erro, parecendo-me que se trata de um por- dos portugueses de uma forma alegórica e
Ele está presente em vários documentos ja- menor sem grande importância. Diria com poética, relacionando-o com a espingarda
poneses, nalguns casos com grandes por- grande certeza que, num destes dois anos, cujo segredo, um ferreiro de Tanegashima
menores sobre as circunstâncias em que tal chegaram à ilha japonesa de Tenegashima trocou por uma das suas filhas, levada pelo
ocorreu. Aquele que me parece mais inte- os primeiros portugueses, impressionando capitão português: a jovem morria de sau-
ressante é o Teppõ-Ki (livro da espingarda), a população e os senhores locais com o uso dades da sua terra e convenceu-o a fazer de
escrito no final do século XVI pelo sacerdote da espingarda. É possível que a viagem te- novo a viagem ao Japão, no ano seguinte. O
budista Dairiuji Bunji. Ali se revela que a 23 nha sido inopinada, resultando de um tem- texto não deve ser interpretado ad litteram,
de Setembro de 1543, chegou a Nishimura poral, mas deve ter-se em conta o carácter mas transmite um sentimento comum, em
Ko-ura, na ilha de Tanegashima, um grande recorrente deste argumento. Na verdade, o relação aos portugueses.
navio com cerca de 100 homens desconheci- (já referido) comércio português nos mares Z
dos, falando uma língua incompreensível, e da China, a partir do final dos anos trinta, J. Semedo de Matos
comunicando com as gentes da terra através teve como centro privilegiado as ilhas da CFR FZ
de um intérprete chinês que escrevia as suas província de Zheijiang, normalmente desig-
* Note-se que as línguas da China e Japão são bastan-
mensagens*. Segundo o texto, de entre os ne- nadas nos textos por Liampó. E tinha uma te distintas e não se entendem mutuamente de forma
gociantes portugueses, havia dois principais: componente significativa na mediação de imediata. Contudo, na sua forma escrita, há ideogramas
“um chamava-se Mura Shukusha (Furanshi- produtos entre o Celeste Império e as ilhas comuns que são compreensíveis por ambos os povos.
24 NOVEMBRO 2007 U REVISTA DA ARMADA