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A MARINHA DE D. JOÃO III (33)
Martim Afonso de Sousa, governador da Índia
Martim Afonso de Sousa, governador da Índia
iogo do Couto, o cronista que conti- mentos de combate, articulados de acordo na ânsia de chegar antes de Afonso de Sousa,
nuou a descrição de João de Barros com o uso europeu da utilização de forças é um exemplo disso. Deve dizer-se que a cor-
Dsobre os feitos portugueses no Orien- de infantaria, com artilharia e cavalos. Infe- rupção era um mal endémico, como será fácil
te, dedicou uma parte das suas energias a lizmente, os resultados não podem contar-se de compreender, mas também é verdade que
um texto que ficou conhecido por Tratado dos pelo pleno sucesso – apesar de ele ter ocorri- a calúnia não o foi menos. Havendo, como
Gama, onde se relatam os feitos de Vasco da do em muitos dos combates, na sua primeira havia, uma distância enorme entre Lisboa e
Gama e dos seus mais directos descendentes fase –, mas deve salientar-se como a impera- a Índia, e entre o Rei e os seus súbditos além-
que foram à Índia, e ali serviram nas mais triz Isabel conseguiu manter a sua liberdade, mar, uma forma fácil de desacreditar fosse
diversas missões. O trabalho foi patrocinado acoitando à sua volta mais de uma centena quem fosse era acusá-lo, de forma velada ou
por D. Francisco da Gama, bisneto do Almi- de sobreviventes portugueses que, a pouco explícita, de corrupção. A dúvida subsistiria
rante e vice-rei da Índia, e tinha claros ob- e pouco, foram regressando. sempre e, na maioria dos casos, era mais for-
jectivos panegíricos, mas, apesar disso, são te que a confiança na lealdade. Estêvão da
evidentes os traços estilísticos do cronista, Gama sabia isso muito bem, e tendo em con-
enquadrando a acção dos personagens no ta os bens que conseguira acumular em Ma-
contexto global da presença portuguesa no laca e que herdara do irmão que ali morreu,
Oriente, sem evitar as vertentes moralista e fácil seria dizer que a riqueza com que de-
crítica da acção, como era seu costume. Não sembarcaria em Lisboa lhe provinha de um
deixa de realçar, por exemplo, a lentidão com mandato corrupto. Não é absurdo pensar que
que Estêvão da Gama avançou de Maçua até não encarara com grande alegria a nomeação
Suez, atribuindo o reforço militar turco e a im- para governador da Índia, à data da morte de
possibilidade de destruir as galés inimigas em Garcia de Noronha, e compreende-se bem
terra, ao tempo que demoraram e à falta de porque mandou inventariar imediatamente
dissimulação da viagem. E fá-lo com alguma todos os seus bens, antes mesmo de tomar
injustiça, esquecendo-se (ou ignorando) que posse do cargo.
a navegação de sul para norte, no Mar Ver- Frei Luís de Sousa, que sobre estes assun-
melho, não se faz como se deseja, mas como tos escreveu muitos anos depois, diz que “ne-
as condições de vento vão permitindo. Cou- nhum governador passou à Índia, que fizesse
to relata ainda o trajecto de regresso a Maçuá vantagem a D. Estêvão na diligência de bem
e a forma como ali apareceu uma embaixada servir a seu rei no bom govêrno e acertada
da imperatriz Isabel, mãe do soberano cristão disposição das cousas”. O testemunho é for-
da Abissínia (o Preste), refugiada que estava te e seguro, mas não impediu completamente
numas montanhas, com uma protecção mi- a áura que cumulou os seus antecessores. Ao
litar reduzida, e assediada sucessivamente facto não foi estranha a forma como Martim
pelo rei mouro de Zeila. Conduzia a comi- Afonso de Sousa chegou à Índia e como lidou
tiva o próprio barnagais, ou governador da com a rendição do cargo, com algum afronta-
província litoral , e os seus intentos eram os mento para Estêvão da Gama. Estamos lem-
de obter ajuda portuguesa para uma guerra brados que a viagem do novo governador –
que se prolongava há mais de uma década com quem viajava S. Francisco Xavier – sofreu
e que atravessava um momento de sufoco um atraso e teve de invernar em Moçambique
para os cristãos abissínios. Estêvão da Gama até à monção pequena de 1542 (Marinha de
decidiu enviar-lhe o que pode chamar-se de Martim Afonso de Sousa D. João III (30)). Entretanto, o seu antecessor
uma “força expedicionária” constituída por Galeria dos Vice-Reis – Velha Goa foi preparando o carregamento de pimenta
cerca de 400 soldados organizados em cinco para as naus que deveriam ser carregadas
bandeiras, com uma notável componente de Estêvão da Gama, entretanto, partira de em Cochim, mas havendo falta de recursos
arcabuzeiros e apoio de artilharia. Comanda- Maçua a 8 de Julho, pensando alcançar a Ín- financeiros para a sua aquisição atempada,
va-a Cristóvão da Gama, irmão mais novo do dia tão depressa quanto possível. Soube, por porque não chegara nenhuma armada em
governador, e a campanha durou entre Julho notícias vindas do Mediterrâneo, via Veneza, 1541, decidiu mandar um galeão ao encontro
e Agosto de 1541, saldando-se pela morte do que a armada saída de Lisboa em 1541 era dos navios que estavam em África, para que
seu comandante e de uma parte considerável comandada por Martim Afonso de Sousa, e trouxesse o dinheiro necessário. Esse tipo de
dos efectivos empenhados, depois de cerca de que este vinha tomar posse do cargo de go- navio tinha condições para fazer a viagem de
dois meses de combates em terrenos muito vernador. Não queria – de maneira nenhuma forma mais ligeira e segura, permitindo a re-
difíceis e contra forças muito superiores em – que ele chegasse a Goa antes de si, de for- solução do problema. Aproveitando o facto,
número. Da actuação dos portugueses ficou ma que partiu sem delongas e dando pressa Afonso de Sousa resolveu embarcar logo para
uma descrição de Miguel Castanhoso, usa- a toda a esquadra. Talvez se tenha precipita- a Índia, procurando entrar em Goa sem ser es-
da por Diogo do Couto que lhe acrescentou do um pouco, porque a estação da travessia perado e inquirindo todos os funcionários de
pormenores transmitidos por sobreviventes ainda não ia segura, e os temporais do final surpresa. A forma como quis tomar conta do
e testemunhos coevos. A impressão que nos da monção foram tremendos e fizeram-no cargo foi verdadeiramente ofensiva, e disso
fica é a de que terá sido uma das acções mili- perder alguns navios e vidas. O governador se queixou o próprio Estêvão da Gama, mas
tares mais organizadas e disciplinadas de to- viveu todo o seu mandato sob o espectro da será assunto para a próxima revista.
das as que tiveram lugar no Oriente, até en- corrupção, que marcara os governos ante- Z
tão. Não encontro outra que se lhe compare, riores, e uma boa parte da sua actuação foi J. Semedo de Matos
na forma como são usados os diferentes ele- marcada por isso. Este regresso precipitado, CFR FZ
22 ABRIL 2008 U REVISTA DA ARMADA