Page 132 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. JOÃO III (33)



          Martim Afonso de Sousa, governador da Índia
          Martim Afonso de Sousa, governador da Índia

               iogo do Couto, o cronista que conti-  mentos de combate, articulados de acordo  na ânsia de chegar antes de Afonso de Sousa,
               nuou a descrição de João de Barros  com o uso europeu da utilização de forças  é um exemplo disso. Deve dizer-se que a cor-
         Dsobre os feitos portugueses no Orien-  de infantaria, com artilharia e cavalos. Infe-  rupção era um mal endémico, como será fácil
         te, dedicou uma parte das suas energias a  lizmente, os resultados não podem contar-se  de compreender, mas também é verdade que
         um texto que ficou conhecido por Tratado dos  pelo pleno sucesso – apesar de ele ter ocorri-  a calúnia não o foi menos. Havendo, como
         Gama, onde se relatam os feitos de Vasco da  do em muitos dos combates, na sua primeira  havia, uma distância enorme entre Lisboa e
         Gama e dos seus mais directos descendentes  fase –, mas deve salientar-se como a impera-  a Índia, e entre o Rei e os seus súbditos além-
         que foram à Índia, e ali serviram nas mais  triz Isabel conseguiu manter a sua liberdade,  mar, uma forma fácil de desacreditar fosse
         diversas missões. O trabalho foi patrocinado  acoitando à sua volta mais de uma centena  quem fosse era acusá-lo, de forma velada ou
         por D. Francisco da Gama, bisneto do Almi-  de sobreviventes portugueses que, a pouco  explícita, de corrupção. A dúvida subsistiria
         rante e vice-rei da Índia, e tinha claros ob-  e pouco, foram regressando.  sempre e, na maioria dos casos, era mais for-
         jectivos panegíricos, mas, apesar disso, são                          te que a confiança na lealdade. Estêvão da
         evidentes os traços estilísticos do cronista,                         Gama sabia isso muito bem, e tendo em con-
         enquadrando a acção dos personagens no                                ta os bens que conseguira acumular em Ma-
         contexto global da presença portuguesa no                             laca e que herdara do irmão que ali morreu,
         Oriente, sem evitar as vertentes moralista e                          fácil seria dizer que a riqueza com que de-
         crítica da acção, como era seu costume. Não                           sembarcaria em Lisboa lhe provinha de um
         deixa de realçar, por exemplo, a lentidão com                         mandato corrupto. Não é absurdo pensar que
         que Estêvão da Gama avançou de Maçua até                              não encarara com grande alegria a nomeação
         Suez, atribuindo o reforço militar turco e a im-                      para governador da Índia, à data da morte de
         possibilidade de destruir as galés inimigas em                        Garcia de Noronha, e compreende-se bem
         terra, ao tempo que demoraram e à falta de                            porque mandou inventariar imediatamente
         dissimulação da viagem. E fá-lo com alguma                            todos os seus bens, antes mesmo de tomar
         injustiça, esquecendo-se (ou ignorando) que                           posse do cargo.
         a navegação de sul para norte, no Mar Ver-                              Frei Luís de Sousa, que sobre estes assun-
         melho, não se faz como se deseja, mas como                            tos escreveu muitos anos depois, diz que “ne-
         as condições de vento vão permitindo. Cou-                            nhum governador passou à Índia, que fizesse
         to relata ainda o trajecto de regresso a Maçuá                        vantagem a D. Estêvão na diligência de bem
         e a forma como ali apareceu uma embaixada                             servir a seu rei no bom govêrno e acertada
         da imperatriz Isabel, mãe do soberano cristão                         disposição das cousas”. O testemunho é for-
         da Abissínia (o Preste), refugiada que estava                         te e seguro, mas não impediu completamente
         numas montanhas, com uma protecção mi-                                a áura que cumulou os seus antecessores. Ao
         litar reduzida, e assediada sucessivamente                            facto não foi estranha a forma como Martim
         pelo rei mouro de Zeila. Conduzia a comi-                             Afonso de Sousa chegou à Índia e como lidou
         tiva o próprio barnagais, ou governador da                            com a rendição do cargo, com algum afronta-
         província litoral , e os seus intentos eram os                        mento para Estêvão da Gama. Estamos lem-
         de obter ajuda portuguesa para uma guerra                             brados que a viagem do novo governador –
         que se prolongava há mais de uma década                               com quem viajava S. Francisco Xavier – sofreu
         e que atravessava um momento de sufoco                                um atraso e teve de invernar em Moçambique
         para os cristãos abissínios. Estêvão da Gama                          até à monção pequena de 1542 (Marinha de
         decidiu enviar-lhe o que pode chamar-se de   Martim Afonso de Sousa   D. João III (30)). Entretanto, o seu antecessor
         uma “força expedicionária” constituída por   Galeria dos Vice-Reis – Velha Goa  foi preparando o carregamento de pimenta
         cerca de 400 soldados organizados em cinco                            para as naus que deveriam ser carregadas
         bandeiras, com uma notável componente de   Estêvão da Gama, entretanto, partira de  em Cochim, mas havendo falta de recursos
         arcabuzeiros e apoio de artilharia. Comanda-  Maçua a 8 de Julho, pensando alcançar a Ín-  financeiros para a sua aquisição atempada,
         va-a Cristóvão da Gama, irmão mais novo do  dia tão depressa quanto possível. Soube, por  porque não chegara nenhuma armada em
         governador, e a campanha durou entre Julho  notícias vindas do Mediterrâneo, via Veneza,  1541, decidiu mandar um galeão ao encontro
         e Agosto de 1541, saldando-se pela morte do  que a armada saída de Lisboa em 1541 era  dos navios que estavam em África, para que
         seu comandante e de uma parte considerável  comandada por Martim Afonso de Sousa, e  trouxesse o dinheiro necessário. Esse tipo de
         dos efectivos empenhados, depois de cerca de  que este vinha tomar posse do cargo de go-  navio tinha condições para fazer a viagem de
         dois meses de combates em terrenos muito  vernador. Não queria – de maneira nenhuma  forma mais ligeira e segura, permitindo a re-
         difíceis e contra forças muito superiores em  – que ele chegasse a Goa antes de si, de for-  solução do problema. Aproveitando o facto,
         número. Da actuação dos portugueses ficou  ma que partiu sem delongas e dando pressa  Afonso de Sousa resolveu embarcar logo para
         uma descrição de Miguel Castanhoso, usa-  a toda a esquadra. Talvez se tenha precipita-  a Índia, procurando entrar em Goa sem ser es-
         da por Diogo do Couto que lhe acrescentou  do um pouco, porque a estação da travessia  perado e inquirindo todos os funcionários de
         pormenores transmitidos por sobreviventes  ainda não ia segura, e os temporais do final  surpresa. A forma como quis tomar conta do
         e testemunhos coevos. A impressão que nos  da monção foram tremendos e fizeram-no  cargo foi verdadeiramente ofensiva, e disso
         fica é a de que terá sido uma das acções mili-  perder alguns navios e vidas. O governador  se queixou o próprio Estêvão da Gama, mas
         tares mais organizadas e disciplinadas de to-  viveu todo o seu mandato sob o espectro da  será assunto para a próxima revista.
         das as que tiveram lugar no Oriente, até en-  corrupção, que marcara os governos ante-                Z
         tão. Não encontro outra que se lhe compare,  riores, e uma boa parte da sua actuação foi   J. Semedo de Matos
         na forma como são usados os diferentes ele-  marcada por isso. Este regresso precipitado,         CFR FZ

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